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Entrevistas sobre todos os temas relacionados ao meio ambiente. Análises sobre os principais desafios no combate ao aquecimento global, à poluição. Iniciativas ...

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  • Fluxos de marés na Amazônia dariam dimensão “gigantesca" a acidente com petróleo, diz renomado cientista
    Faz mais de 30 anos que o antropólogo Eduardo Bronzidio pesquisa as interações entre os humanos e o ambiente na Amazônia. Seus estudos junto a comunidades indígenas e ribeirinhas, mas também urbanas, nas cidades amazônicas, acabam de ser reconhecidos pelo mais importante prêmio internacional para as ciências ambientais, o Tyler Prize. Lúcia Müzell, da RFI em ParisPela primeira vez desde a sua criação, em 1973, o "Nobel ambiental” é atribuído a cientistas latino-americanos – Bronzidio dividiu a premiação com a ecóloga argentina Sandra Días. "A gente tenta trazer a realidade que é vivida no chão por essas populações. Não só suas contribuições, mostrando o valor dos seus conhecimentos, o valor das suas atividades e tecnologias para a economia regional e a conservação da região. Mas também trazer os problemas que enfrentam, suas carências, as pressões que sofrem”, salienta o brasileiro.E é com preocupação que o cientista, professor da Unicamp e da Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, vê o andamento do projeto do governo federal de abrir uma nova frente de exploração de petróleo na Bacia da Foz do Amazonas. Em entrevista à RFI, Bronzidio constata que, assim como em Brasília, o plano desperta paixões contraditórias na região. "A reação das pessoas é aquela que a gente encontra em muitas situações parecidas, onde se cria uma polarização entre, por exemplo, meio ambiente e emprego. Acaba criando divisões e simplificações do problema. É uma tática muito antiga de avançar esse tipo de agenda, na qual se colocam dicotomias que na verdade são simplificações de um problema maior, pela carência da região e a insolvência, na verdade, dos municípios”, afirma. Como antropólogo, entretanto, é a configuração natural da Amazônia que mais o preocupa, frente à possibilidade de um acidente que leve a derramamento de óleo no Delta do Amazonas. Ele explica que a pluma do rio alcança a costa do Pará, Maranhão e Amapá e sobe para as Guianas, com um forte sistema de marés que invade, diariamente, territórios adentro. “A vida nessa região é regrada por maré. É um esquema de pulsação ali onde eu fico imaginando que a escala de um desastre de derramamento de óleo de explosão da exploração, como aconteceu no Golfo do México”, afirma. “Ela pode ter uma distribuição numa escala gigantesca por causa desse fluxo de maré. Então, eu tenho a preocupação em particular pelo tipo de risco, que é muito diferente dos tipos de risco que se tem em outras plataformas costeiras isoladas”, indica.Eduardo Bronzidio foi copresidente do relatório de Avaliação Global sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos do IPBES, da ONU. O documento foi um dos que embasou o acordo de Kunming-Montreal de preservação da Biodiversidade, com metas para 2030.Leia abaixo os principais trechos da entrevista. A sua vitória a este prêmio ilustra uma mudança de paradigma: dois pesquisadores latino americanos vencem pela primeira vez o Tyler Prize. Você fez carreira compreendendo e interpretando os conhecimentos dos povos tradicionais da Amazônia. Indiretamente, ribeirinhos e os indígenas são também vencedores? Os conhecimentos deles são de fato mais reconhecidos pela ciência mundial?Eu espero que todos se sintam reconhecidos, porque o que a gente tenta fazer, ao longo de 30 e poucos anos, é trazer a realidade vivida no chão por essas populações. Não só suas contribuições para uma região como a Amazônia, e também a nível global, mas os problemas que enfrentam, suas carências, as pressões que sofrem. Então, eu espero que isso se reflita também e que muitos se sintam agraciados com parte desse prêmio, porque muito do que aprendi vem deles. Uma das suas áreas de estudo é como os povos tradicionais cuidam, produzem, vivem na Amazônia sem destruí-la. O desenvolvimento de uma bioeconomia amazônica é central, inclusive para ajudar a preservar esse imenso território, e será levada pelo Brasil na COP30 em Belém. É possível e é desejável dar escala às produções locais?Eu acho que, por um lado, já existe uma escala dessa sociobioeconomia, porém ela é estatisticamente invisível. Nós temos um problema de contabilidade, de realmente compreender quem faz a economia da região, quem produz alimentos, dá emprego, maneja e protege as florestas. Quem está produzindo uma infinidade, trazendo uma infinidade da biodiversidade regional para populações da região, nacional e internacionalmente. A gente precisa reconhecer essas escalas, dar apoio para que elas se mantenham. A maneira que eu vejo isso é como que a gente pode ajudar a consolidar e avançar o que já é feito, nos lugares onde acontecem, e fazer com que eles tenham também uma sustentabilidade econômica. Hoje, um dos maiores problemas das economias, mesmo as mais bem sucedidas – seja no açaí e de outros frutos como cacau, seja no manejo pesqueiro ou manejo sustentável de florestas – é que elas geram produtos que têm imenso valor, porém, elas têm a menor fatia do rendimento econômico. Conseguir abrir caminhos de mercados na região e fora da região, onde o rendimento se torne mais para onde está sendo produzido, para as comunidades, para os municípios, é tão importante quanto a escala que ela pode ganhar, do ponto de vista de extensão.O que torna essa economia local invisível? São as camadas que existem entre esses produtores e onde vão parar as produções deles? Eu acho que tem várias questões históricas, sociais, culturais e econômicas que constroem essa invisibilidade. Uma é no reconhecimento dessas populações ribeirinhas, quilombolas, indígenas e produtores de pequena escala como agentes ativos da economia regional.Muitas vezes, a gente fala e pensa como se fossem anacrônicos, como se fossem tecnologias que estão aí ainda resistindo, mas que deveriam ter ficado para trás. A gente tem uma visão de inclusão e de transformação social que, na verdade, exclui essas populações dessa trajetória do desenvolvimento, que é tão arraigada na maneira que a gente pensa na economia e no desenvolvimento nacional. Elas são populações ativas, estão contribuindo, produzindo alimentos e todo tipo de recurso para exportação, mas não necessariamente são vistas como esses atores ativos que são.O outro aspecto é a invisibilidade estatística. Nós não temos nem bons dados, nem categorias apropriadas para realmente saber entender a escala dessas economias. Eu digo escala em termos de manejo, do produto que geram e em termos dos empregos. Essa deficiência acaba invisibilizando muito dessa economia que está acontecendo na floresta. A gente não sabe realmente o peso dela e isso acaba tendo outras implicações. Ao visibilizar, não se pensa em políticas públicas que realmente possam alavancar essa economia já existente. Também se tem carência de extensão rural, carência logística, dependência de intermediários. Você tem uma série de problemas que tira a riqueza que elas produzem das áreas, das pessoas e das localidades onde são produzidas.Essas economias geram economias bilionárias, porém, elas passam em uma outra parte da invisibilidade. Elas passam por cadeias informais fragmentadas, entre mãos de produtores, intermediários, corporações, uma série de condições subjacentes a essa não-visibilidade. Sobre esse aspecto que você mencionou da carência logística, muitas organizações ambientalistas buscam combater projetos nesse sentido, porque alegam que redes criminosas que atuam por ali também vão acabar se beneficiando – talvez até mais do que as comunidades locais. Você concorda? Logística é um tema difícil, porque já motiva visões e emoções na cabeça das pessoas que estão geralmente ligados a obras grandes, de impacto, ou a grandes setores. Essa é uma maneira de logística, mas a gente não precisa de logística só dessa maneira. Se a gente pega os últimos 30 anos, você vê um avanço muito grande numa série de passos: o reconhecimento territorial de populações indígenas, áreas de uso sustentável de reservas extrativistas, reforma agrária. Você tem um grande avanço no sentido de consolidar áreas com direitos onde se manejam, se constroem essas economias.Se teve, num primeiro momento, muito investimento nos sistemas produtivos, como um modelo de desenvolvimento. Isso avançou bastante. Porém, com o tempo, foi se vendo que esses avanços acabam sendo limitados por questão de gestão e de acesso a mercado. A gente conseguiu muitos avanços na área de produção, de manejo sustentável, de restauração. Conseguiu bastante avanço na parte de organização social, de formação de associações de cooperativas, e progressivamente avanços na área de acesso ao mercado.Hoje, o que a gente tem notado trabalhando em várias partes da região, com comunidades que estão baseadas na produção de frutos ou produtos essenciais à floresta, como óleos, madeira, produtos da pesca, é que a conta não fecha. Você tem um produto valiosíssimo, que tem um mercado que paga muito e é um produto inclusivo, onde populações locais, mulheres, homens, associações, cooperativas estão produzindo, mas você tem entre esses dois uma deficiência muito grande.Todos esses esforços de sustentar esses territórios, que têm sido tão importantes na região para bloquear o desmatamento, manter a saúde dos rios e da floresta, acabam, sim, sendo desafiados nesse momento. O custo de produção acaba sendo alto pelas questões de contexto local. O custo de comercialização acaba sendo altíssimo e, dependendo de intermediário, também por essas carências.E aí você também tem uma falta de outras logísticas que permitem alcançar mercados intermediários, por exemplo, de armazenamento, câmara fria. Então, eu acho que é realmente uma área onde precisa se colocar esforço.Nós documentamos centenas de milhares de iniciativas locais nos últimos anos, e isso só foi a ponta do iceberg. Tem milhares de iniciativas na região que estão ali, avançando, mas precisam de um apoio mais consolidado na parte de acesso ao mercado, na parte de crédito, na parte de extensão rural também.Na Europa, mas não só, existe a ideia de que a Amazônia deveria ser um santuário do mundo, pela sua floresta abundante, sua riqueza biodiversa. Mas a gente sabe que isso não vai acontecer – pelo contrário, sem um plano de desenvolvimento, atividades ilegais e predadoras da floresta proliferam. A visão da região como um santuário não é só europeia. No Brasil também é parte das ideias. Eu acho que a gente tem um legado histórico de imaginários da Amazônia e eles continuam sendo muito mais fortes do que a realidade da Amazônia. Você tem vários imaginários que vêm desde o Eldorado ao imaginário do pulmão do mundo. O imaginário da cesta de commodities que vai alavancar o desenvolvimento nacional, o do agro tecnológico, de uma grande monocultura regional exportando commodities para o mundo.A região tem vários imaginários que são ainda predominantes, de como a gente vê a região e a sua população. Eles escondem uma realidade e, ao escondê-la, fica muito difícil você pensar em caminhos de desenvolvimento, porque é uma ideia de desenvolvimento regional que é feita distante da realidade. É uma ideia que não vai nem refletir os ensejos da população local, nem lidar com os problemas de lá.Leia tambémFloresta desmatada para abrir avenida: obras em Belém para a COP30 falham na sustentabilidadeO problema, por exemplo, do imaginário do santuário, da floresta intocável, é que nem leva em consideração os milênios de manejo e domesticação daquela floresta por populações, que hoje transferem essa floresta rica para a gente. Rica em muitas espécies domesticadas que geram riqueza no mundo inteiro, mas esse imaginário desconsidera a cultura da floresta amazônica, e também desconsidera a escala de degradação que se atingiu na Amazônia e que, dependendo de onde você olha, você vai achar até 50% da região numa escala degradada.Eu acho que a gente precisa repensar o que é um santuário, no sentido de valorizar a floresta que está lá: manter a saúde do ecossistema de rios saudáveis, florestas saudáveis e populações saudáveis.Que caminhos você vê para um desenvolvimento sustentável da região amazônica, inclusive das áreas urbanas que, em sua maioria, são marcadas por uma pobreza grande, déficits importantes de infraestruturas mínimas para as populações? A primeira questão para a gente ver o futuro da Amazônia é encarar a realidade dela. É encarar que os nossos imaginários não representam essa realidade. Só assim a gente pode pensar num desenvolvimento sustentado que começa a lidar com os problemas da região.A outra é que para pensar o futuro da região, a gente primeiro tem que encarar a coevolução das várias frentes de desenvolvimento que hoje estão criando fricções umas com as outras, e a realidade urbana que se evoluiu nesses últimos 30 anos. Não dá para pensar em desenvolvimento regional isolando da transformação da paisagem rural, indígena e da paisagem urbana.Desde os anos 1990, você tem um enorme avanço na região, que é reconhecimento de direitos territoriais, de populações indígenas, populações rurais tradicionais e rurais em geral, em áreas indígenas, reservas extrativistas, áreas de uso sustentável e algumas áreas protegidas. Só no Brasil são mais ou menos 45% da região que estão nessas áreas. Foi um avanço gigante, que serviu para controlar o desmatamento e para garantir o direito das populações da região.Esse modelo, que eu chamo modelo de nível único, de nível territorial, chegou num limite para partes da região, porque essas áreas que são muito bem governadas por dentro, pelas comunidades que estão lá, estão sendo erodidas por fora. Hoje você tem toda a parte sul da bacia, uma situação de formação de ilhas de biodiversidade, de diversidade cultural, onde o sistema bem sucedido de governança interna não pode lidar com os problemas externos.Em todas aquelas ótimas florestas protegidas, aquele limite bem claro onde o desmatamento começa, você tem ilhas protegidas que estão recebendo de fora poluição de pesticida, rios sedimentados, mercúrio, fumaça, fogo que escapa e entra nessas áreas, além do crime organizado e da economia ilegal, que saiu do controle na região nos últimos anos.Então, para pensar o desenvolvimento regional, temos que pensar no desenvolvimento para conectividade, onde a saúde ambiental da região está dependendo muito mais de atores dentro de uma reserva do que uma ponte social, que se cria entre diferentes atores para que se mantenha a conectividade da paisagem e dos rios, e se controle a distribuição dos impactos da região.Teria que pensar um desenvolvimento que encara essa realidade e tenta criar um contrato comum, que hoje nós não temos. Você tem a polarização de populações indígenas tradicionais, do agro e outras populações, e do outro lado, toda a questão urbana.Que tipo de cidades precisamos visar na Amazônia para preservá-la? A região, do ponto de vista urbano, hoje é completamente diferente do que era há 20 ou 30 anos. Não só você tem uma grande expansão de novas áreas urbanas a partir da Constituição de 1988, mas teve uma transformação na maneira de articulação dessas áreas.Nós fizemos uma análise publicada há muitos anos sobre a articulação urbana da região nos anos 2000, na qual a gente mostra que era uma urbanização desarticulada: você tinha centros urbanos regionais que tinham suas áreas satélites e formam uma rede urbana de um centro maior até as vilas rurais. Hoje em dia, já tem uma articulação em boa parte da bacia entre esses grupos de centros urbanos. Criou-se uma conexão por estradas e outros mecanismos, e essa rede continua se expandindo. Ela está articulando toda a ocupação regional e a distribuição dos impactos na região. Então, temos que pensar de uma maneira conjunta entre as áreas mais protegidas, diferentes tipos de áreas com diferentes grupos indígenas.Essas áreas agrárias e as áreas urbanas estão conectadas. O impacto que sai de uma está indo para outra. E dentro de todos esses imaginários que a gente está falando da Amazônia, um que não cabe em lugar nenhum é o urbano. Ele acaba sendo o mais invisível e é onde os maiores problemas, de certa maneira, estão.Você já trabalhou a questão da possibilidade de exploração de petróleo na Foz do Amazonas? Como as comunidades locais e urbanas percebem esse projeto? Com medo ou entusiasmo? É visto como uma ameaça ou uma oportunidade?Eu nunca trabalhei diretamente com a questão de óleo na região. Acompanhei por um tempo que eu tive alunos trabalhando no Equador, inclusive em comunidade indígena. Lá tem uma história muito impactante do óleo. Eu acho que a gente precisa lembrar dessas histórias de outras regiões que foram impactadas pelo mesmo processo que está acontecendo agora, para a gente pensar nas implicações de óleo para Amazônia.A reação das pessoas que eu tenho acesso é aquela que a gente encontra em muitas situações parecidas, onde se cria uma polarização entre, por exemplo, meio ambiente e emprego, ou as necessidades básicas de um município. É uma maneira de levar essas questões que acaba criando divisões e simplificações do problema. Eu acho que isso tem acontecido bastante na região. É uma tática muito antiga de avançar esse tipo de agenda, na qual se colocam dicotomias que na verdade são simplificações de um problema maior, pela carência da região e pela insolvência dos municípios.Tem muitas dúvidas também. As pessoas estão vendo projetos de milagres e desenvolvimento há 50 anos. As pessoas não são tão inocentes de que essas grandes ideias farão um milagre, resolvam problemas que são estruturais na região. Então, é um momento difícil. Eu me sinto bastante preocupado com esse tipo de investimento, porque é uma energia enorme para investir em mais emissões, para investir em exploração de óleo, quando a gente tem a oportunidade de pensar em alternativas e outros caminhos e realmente enfrentar a mudança climática com o corte de emissões. Sobretudo para alguém como você, que conhece tão bem os outros potenciais invisíveis da Amazônia, como você mencionava. Exatamente, toda a economia que tem e que pode ser alavancada para gerar uma grande economia, que não é gerada. Hoje, as riquezas bilionárias das regiões passam por cima dos municípios. Não se consegue captar imposto, não se consegue processar e agregar valor nos lugares onde elas são produzidas.Agora, o que me preocupa são os riscos potenciais associados a vazamento e outros problemas, que a gente vê tão frequentemente em tanto lugares. Nesse tipo de contexto, como é aquela região do Delta do Amazonas e aquela plataforma costeira, é uma região muito particular por causa da pluma do rio e do alcance que ela tem. Ela pega todo o Salgado, da costa paraense para costa maranhense, pega toda a região costeira do Amapá e sobe para as Guianas. Ela é uma pluma de uma influência gigantesca no contexto regional continental.Nessa pluma você também tem um sistema de maré dos mais fortes que existem. A vida nessa região é regrada por maré. É uma vida onde, duas vezes por dia, a maré entra e sobe dois metros, senão três metros. A maré entra na região tanto pelo Canal Norte como pelo Canal Sul, embaixo do Marajó, o Tocantins e outros rios, e adentra até atrás do Marajó.É um esquema de pulsação que eu fico imaginando que a escala de um desastre de derramamento de óleo, de explosão da exploração, como aconteceu no Golfo do México, pode ter uma distribuição gigantesca por causa desse fluxo de maré. Ela vai impactar não só grandes regiões de manguezais na costa do Amapá e na costa do Salgado, que são viveiros da ecologia pesqueira da região, como vai se penetrar ali por todas as cidades, igarapés e rios, onde as pessoas dependem da água para tudo e onde toda a economia funciona em torno da água.Eu tenho a preocupação em particular pelo tipo de risco, que é muito diferente dos tipos de risco que se tem em outras plataformas costeiras isoladas, por exemplo. Eu acho que ali na região você tem esse risco acentuado.Você, como antropólogo, tem acompanhado o aumento dessas pressões humanas sobre a Amazônia e os seus recursos nas últimas décadas. Em paralelo, as pesquisas climáticas sobre o ponto de não retorno da floresta alertam sobre o grande risco que ela já corre. Que futuro você visualiza para a Amazônia? Consegue olhar para frente com otimismo?Eu tento ter pelo menos o que eu chamo de otimismo crítico. Eu tenho um olhar otimista na floresta porque eu trabalho no chão, com comunidades, com associações, com cooperativas e com organizações que estão lá lutando e fazendo a diferença, e conseguindo resultados no dia a dia. Eu nem me sinto numa posição de não ter esperança.Quando pessoas que estão enfrentando situações muito difíceis, muito mais carentes, estão lá buscando soluções e buscando caminhos para a região, eu me sinto privilegiado de poder ver, acompanhar e participar. E isso me dá essa energia, me dá um encorajamento de que, sim, nós temos soluções para Amazônia.As soluções já estão lá. Em muitos casos, a gente precisa abrir a copa da floresta, ver essas soluções e dar força para que elas ganhem mais escala, que saiam daqueles, em muitos casos, nichos isolados, numa paisagem cercada de tudo que é contrário, para ser parte dominante dessas paisagens.Sobre o ponto biofísico de inflexão, é uma realidade que está se aproximando muito rapidamente da região, que vem dessa coevolução de forças ocupando a paisagem e que hoje estão tendo fricções umas com as outras. Acontece que esse processo de ocupação foi não só criando áreas abertas imensas, quebrando a chamada bomba d'água da floresta e do clima da Amazônia. Isso volta ao ponto que eu estava falando, da importância de a gente pensar numa Amazônia pela conectividade. É restaurando áreas, e eu acho que a gente tem que privilegiar a conectividade dos rios e a saúde deles, que conectam esses vários sistemas de uso e governança da terra, buscando restaurar a fragmentação da floresta também.Tem oportunidades de se buscar uma restauração mais produtiva. A improdutividade da maioria dos pastos da região é o dominante na região. Boa parte dos 60% de áreas desmatadas que estão em pasto são extremamente improdutivas. A gente recentemente fez uma análise desses pastos, onde a produtividade por hectare chega a ser uma cabeça por hectare, às vezes menos. As melhores estão em 1,4 ou 1,5 por hectare. São terras extremamente improdutivas que têm valor como terra, e que também podem ser sujeitos a transições que a levem a ser mais produtivas.Também precisa que se regenere áreas, que se cumpra a lei de áreas de preservação permanente. Tem muitos caminhos que podem reconciliar esses esforços, mas eu acho que antes de tudo, a gente precisa garantir os avanços que foram feitos: garantir a integridade das áreas indígenas, das reservas extrativistas, das áreas protegidas, das áreas de usos sustentáveis, que hoje estão extremamente ameaçadas.
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  • Movimento anti-ESG ganha impulso nos EUA sob Trump e ameaça influenciar empresas pelo mundo
    Nos últimos anos, a polarização política nos Estados Unidos levou ao surgimento de um movimento organizado contra as práticas ESG, sigla em inglês para critérios ambientais, sociais e de governança nas empresas. A determinação do presidente Donald Trump em desmantelar a política americana para o meio ambiente impulsiona essa onda – que pode influenciar fundos de investimentos e companhias pelo mundo. Os recuos nas políticas de diversidade de grandes empresas americanas, como Meta e Google, ilustram o quanto a agenda “antiwoke” ganha espaço na maior economia do mundo. O impacto nos objetivos de descarbonização ainda é incerto, mas os investidores têm sofrido pressões crescentes dos republicanos para se afastarem de projetos com viés ambiental marcante."Alguns estados estão processando empresas que têm práticas de diversidade e inclusão, por dizerem que são discriminatórias ou de racismo reverso. Então a empresa, em um contexto em que isso pode se tornar ilegal e ela pode sofrer um processo judicial, retira essas práticas”, constata Gustavo Loiola, professor de Sustentabilidade na FGV e PUC-PR, entre outras instituições, e gerente de projetos no PRME, iniciativa da ONU voltada para educação executiva. Fundos de investimentosEm 2024, a coalizão de acionistas Climate Action 100+, que exige balanços climáticos completos das companhias mais emissoras de CO₂, registrou uma fuga em massa de gigantes do capital financeiro, como JP Morgan Chase e BlackRock, a maior gestora de ativos do mundo. Após a posse de Trump, as principais coalizões americanas de investidores engajados pela neutralidade de carbono sofreram uma debandada de seus financiadores, inclusive europeus.Loiola nota que o termo ESG é, na origem, uma sigla do meio financeiro para direcionar investimentos, portanto está atrelado à percepção de risco das empresas. Na medida em que entrou no furacão da radicalização política nos Estados Unidos, passou a ser um alvo – ao ponto que muitas empresas hoje escolhem esconder as suas políticas de ESG, no que é apelidado como greenhushing."A meu ver, tem muito mais um debate político de anti-ESG do que de estratégia, de empresas mudando ou deixando de lado as suas estratégias. Eu não acho que vá acontecer no Brasil como nos Estados Unidos, onde tem um movimento estruturado, um lobby que influencia muito”, avalia. “Lá teve um escalonamento, impulsionado pelas questões políticas, e quando a gente olha o investidor americano, que é mais voraz, ele não quer polêmica. Se estão falando muito sobre um termo de forma ruim, que impacta a reputação, ou um grupo de investidores, ou uma audiência específica, o investidor retrai o seu investimento para evitar prejuízos.”Agronegócio não poderá ignorar sustentabilidadeApesar do peso dos meios conservadores na economia brasileira, o país não parece embarcar na onda anti-ESG americana, avalia Loiola. Ele nota que as companhias têm voltado a preferir o termo “sustentabilidade” em vez da sigla ESG."É diferente do que a gente via há dois ou três anos: todas as comunicações das empresas eram só sobre ESG, todo mundo anunciando compromissos de net zero, compromissos raciais e sociais. Hoje a gente vê menos isso, mas ainda é bastante sólido”, afirma o especialista.Ele explica que o mercado financeiro do Brasil é mais fechado, focado no nacional. Além disso, a economia brasileira é menos diversificada, com forte dependência da produção e exportação agropecuária – setores em que os critérios de sustentabilidade estão cada vez mais rígidos, principalmente no comércio internacional."Não tem como não falar de clima dentro do agronegócio. O produtor rural é o primeiro a sofrer com a escassez ou o excesso de chuvas e as mudanças climáticas, que acabam afetando a produção”, salienta. "Impacta também o setor financeiro, que oferece crédito para o agronegócio. O risco do setor financeiro em emprestar se torna maior, então é ilógico não olhar para esses temas."Neste sentido, o país tem buscado desenvolver a sua atratividade e explorar a sua vantagem de potência socioambiental, como a recente lei de regulação do mercado de carbono e a política nacional para estimular a bioeconomia.Petroleiras recuam nas renováveisPor outro lado, o plano de abertura de novas frentes de petróleo, ao norte do país, pode ser um sinal da influência do contexto americano no cenário internacional sobre as energias fósseis.Na Europa, grandes petroleiras como Shell e BP diminuíram suas ambições climáticas: a primeira desistiu de projetos de energia eólica offshore, biocombustíveis e hidrogênio, e a segunda vai voltar a se concentrar no petróleo e no gás, com aumento de 20% dos investimentos para a produção de ambos.Em fevereiro, atendendo a exigências dos acionistas, a BP anunciou que recuou no seu plano de ser exemplar nas energias chamadas de transição – a gigante britânica amputou o orçamento do setor de renováveis até o fim da década.Leia tambémPacto para a Indústria Limpa da UE visa botar produção ‘made in Europe’ no foco da descarbonização
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  • Pacto para a Indústria Limpa da UE visa botar produção ‘made in Europe’ no foco da descarbonização
    A Comissão Europeia propôs nesta quarta-feira (26) um vasto plano para impulsionar a indústria limpa no bloco e reposicionar as fabricantes europeias, dizimadas pela concorrência chinesa e americana, no foco da descarbonização. Com a medida, Bruxelas sinaliza que, apesar dos retrocessos nos Estados Unidos e dos crescentes questionamentos dentro da própria UE, não vai desviar do caminho da neutralidade climática até 2050. Lúcia Müzell, da RFI em ParisO pacto prevê um arsenal de medidas de estímulo, com a mobilização de € 100 bilhões para investimentos e o alívio nas regulamentações em vigor, para apoiar a recuperação das empresas. Em paralelo, visa baixar o alto custo da energia, por meio da modernização da rede elétrica e a diminuição da dependência externa de fósseis a longo prazo, graças ao desenvolvimento das renováveis.O texto quebra o tabu de visar a "preferência pelo europeu” – o made in Europe está no coração do Pacto para a Indústria Limpa, nota Neil Makaroff, diretor do think tank Perspectivas Estratégicas, baseado em Paris e Bruxelas."A Europa, ao contrário dos Estados Unidos, não volta atrás na descarbonização e não cogita voltar à economia do gás, do petróleo e do carvão – pelo contrário, a descarbonização é um dos motores da estratégia industrial”, disse a jornalistas. "A UE quer atrair para o seu território as usinas da transição e entrar em concorrência com a China nesta área, e quer descarbonizar a sua base industrial já existente de aço, cimento, químicos, para torná-la mais competitiva.”Plano em vigor não teve estratégiaO Pacto Ecológico, lançado em 2019, prevê um plano para a indústria, mas falhou ao não trazer nem uma estratégia clara, nem o financiamento necessários para as empresas europeias enfrentarem a avalanche de produtos chineses que inundaram o mercado do continente. O bloco sofre uma perda de competitividade estrutural que o encaminha para o declínio, espremido entre os dois poderosos concorrentes que apostaram pesado na produção de turbinas eólicas, painéis fotovoltaicos e baterias elétricas.Potências industriais como a França e a Alemanha viram dezenas de fabricantes fecharem as portas, inclusive nestes setores essenciais para a transição energética. "A nossa diferença em relação à China e aos Estados Unidos é que eles têm estratégia. A China tem uma há 10 anos e os EUA lançaram o Inflation Reduction Act (IRA) em 2022. Ainda não sabemos bem o que ele vai virar, mas os americanos souberam criar um apoio tão massivo à indústria limpa que até capitais europeus começaram a financiar projetos lá”, salienta Celia Agostini, diretora da Cleantech for France. "A questão principal para nós é saber se o Pacto para a Indústria Limpa será essa esperada estratégia, que nós desejamos há tanto tempo.”O plano confirma a meta europeia de cortar 90% das emissões de gases de efeito estufa até 2040 e coloca a economia verde no foco desse objetivo. Para atingi-lo, o impulso à eletrificação da economia será uma etapa fundamental, que o projeto pretende contemplar. A França conseguiu impor a energia nuclear no pacote de energias descarbonizadas, mas Paris e Berlim divergem sobre destinar recursos para estas usinas.Investimentos podem reverter atrasosO projeto também visa beneficiar com isenções de taxas as empresas que fabricarem com menos impacto de carbono. "Uma bateria fabricada na Europa é 32% mais cara do que uma na China, mas se o critério da pegada de carbono é adotado, as regras do jogo mudam completamente e uma bateria europeia se torna tão competitiva quanto a chinesa. Isso pode ser replicado em vários setores da indústria verde”, frisa Makaroff. “Mas atenção: a própria China está focada em limpar setores específicos, como a produção de aço verde."Ciarán Humphreys, especialista na indústria limpa do Institut for Climate Economics (I4CE), insiste na importância do aumento dos investimentos públicos europeus. Países reticentes, como Dinamarca e Finlândia, têm se mostrado mais abertos à ideia de um empréstimo comum europeu para financiar a indústria da defesa, em meio às tensões geopolíticas internacionais, mas também a economia verde.“Se nós falharmos, teremos mais fechamentos de empresas e de empregos, e a Europa terá um atraso impossível de recuperar em relação à China. É crucial para a nossa descarbonização, mas também para a nossa soberania, porque uma transição na qual temos que comprar tudo, em vez de fabricarmos nós mesmos, não será apoiada a longo prazo pelos cidadãos europeus”, ressalta. “Também representa um risco estratégico, como vimos no caso da Rússia e o uso que Putin fez do fornecimento de gás para a Europa, como uma arma contra o bloco”, lembra.Flexibilizações de regras frustram ambientalistasOutro aspecto importante é o da simplificação das regulamentações em vigor, foco de tensão política entre os Estados-membros e que contribuiu para as fabricantes europeias perderem a corrida industrial limpa, segundo seus críticos. Na tentativa de acalmar o sentimento anti-UE, a Comissão apresentou o chamado pacote Omnibus, que busca aliviar ou até modificar a legislação europeia adotada no quadro do Pacto Verde, principalmente em questões sociais e ambientais.A medida é uma exigência antiga do meio empresarial, que acusa o que seria um excesso de regulamentação como um dos principais fatores para a perda da competitividade europeia. Do outro lado, organizações ambientalistas e de defesa de direitos humanos temem que um retrocesso no dever de vigilância e na transparência da cadeia produtiva levem as empresas a relaxar no desmatamento importado ou o uso de mão de obra em condições degradantes, na própria Europa ou no exterior.O "dever de vigilância” imposto aos industriais pode ser adiado em um ano, e o número de empresas sujeitas à chamada contabilidade verde – publicação de dados referentes à sustentabilidade da cadeia – cairia de 50 mil para apenas 10 mil."Vemos sinais incoerentes por parte da Comissão. De um lado, ela diz que a Europa se compromete a atuar pela competitividade, sob as bases de uma transformação sustentável. Mas, do outro, indica que todo o quadro regulatório que foi estabelecido, que passou por tantas instâncias e foi aprovado por todos, poderá ser revisto, sem nenhuma análise de impacto”, aponta Jurei Yada, diretora de Finanças Sustentáveis Europeias da E3G. "Do ponto de vista da estabilidade regulamentar, que é muito importante para os investidores, principalmente os estrangeiros, isso pode atrapalhar. A fragmentação das exigências cria confusão e atrapalha os investimentos”, complementa.Leia tambémNova norma obriga reciclagem de roupas na UE, mas volume e baixa qualidade das peças impedem avançosO comissário europeu de Estratégia Industrial, Stéphane Séjourné, defendeu as medidas e disse que elas demonstram que "a Europa sabe se reformar”. “Sem motosserra, mas com homens e mulheres competentes, que escutam os atores econômicos”, argumentou, sem poupar uma ironia ao recente encontro entre Elon Musk e o presidente argentino, Javier Milei, no qual o bilionário ergueu o aparelho.O projeto do Pacto para a Indústria Limpa e o pacote Omnibus devem agora ser encaminhados à aprovação do Parlamento Europeu e dos Estados-membros.
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  • Floresta desmatada para abrir avenida: obras em Belém para a COP30 falham na sustentabilidade
    A nove meses da 30ª Conferência da ONU das Mudanças Climáticas em Belém, a capital paraense acelera os preparativos para receber o maior evento do mundo sobre o combate ao aquecimento global. Mas entre as obras previstas para a COP30, algumas entram em contradição com o próprio objetivo da conferência. Lúcia Müzell, da RFI em ParisÉ o caso de dois projetos apresentados como de mobilidade, mas que, na prática, favorecem o uso de carros particulares em vez de transporte público, e ainda atingem áreas florestais preservadas. Os planos de duplicação da rua da Marinha e de construção da Avenida Liberdade visam diminuir os engarrafamentos entre Belém e sua região metropolitana.“Tem obras que não têm nada a ver e que, para mim, são altamente contraditórias sob a perspectiva da agenda da COP e das mudanças climáticas. São obras rodoviaristas e a política para o carro a gente sabe como é: quanto mais espaço você der para o carro, mais carros vai ter”, aponta a diretora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará (UFPA), Roberta Rodrigues, que integra um grupo de pesquisa do CNPQ sobre os impactos de grandes eventos para as cidades-sede, com foco na COP30 em Belém. “E a gente sabe ao que elas estão atreladas: a interesses bem específicos do mercado imobiliário e de grupos específicos daqui”, afirma.Segundo especialistas, as obras não apenas serão irrelevantes para a realização da COP, como ainda pioram a adaptação da capital paraense às mudanças climáticas, ao diminuírem as áreas verdes da metrópole e gerarem aumento das emissões de CO2 pela maior queima de combustíveis. O arquiteto e urbanista Lucas Nassar constata que a sustentabilidade não foi o fio-condutor dos projetos de Belém para realizar a conferência, com financiamento do Ministério do Planejamento e Orçamento, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e de Itaipu Binacional. Nassar é diretor-geral da organização Laboratório da Cidade, que ajuda as cidades amazônicas a se adaptarem ao aquecimento do planeta e faz parte do Comitê COP30. A coalizão de 99 organizações mapeou a relação entre importância das obras e a sustentabilidade dos projetos. O estudo conclui que poucos são, ao mesmo tempo, necessários e “verdes”.  “A gente não pode dizer que não houve, mas está muito aquém do que nós esperaríamos de um evento cujo tema é mudanças climáticas. Tem muita obra e muito investimento que está sendo feito que não tem nenhuma compatibilidade com a nova agenda urbana sustentável”, lamenta.Como bons exemplos, ele cita a construção do Parque da Cidade, local onde a conferência será realizada e legado para atividades culturais e de lazer em Belém, a revitalização do Porto do Futuro II, no centro da capital, e a renovação da frota de ônibus municipais – com 700 modelos elétricos ou padrão Euro 6, até 20% menos poluentes do que os que rodam atualmente na metrópole.Animais e quilombo ameaçados por estradaPor outro lado, o traçado da avenida Liberdade corta nada menos do que uma Área de Proteção Ambiental, com mata nativa da Amazônia. “O impacto é gigantesco, numa área que é uma APA e na lei da APA diz que não pode ter. Não poderia. Você compromete um manancial, áreas onde vivem comunidades tradicionais, quilombolas”, salienta Roberta Rodrigues. “Sem falar que é uma área que vai ser rasgada ao meio e, de um lado como do outro, dizem que não vão ter propostas de uso dessas áreas a médio prazo, sendo que vão fazer uma rodovia ali, ao longo? Não existe isso.”A pouco mais de um quilômetro da futura avenida, com quatro pistas e mais de 13 quilômetros de extensão, vive uma comunidade tradicional no quilombo do Abacatal. Uma análise de impacto ambiental feita pelo governo estadual em 2023 identificou dezenas de espécies de répteis, aves e mamíferos que a estrada poderá “afugentar”, com “risco de atropelamentos”.“Para os animais aquáticos poderá haver perda ou morte devido a possível alteração da qualidade da água nos rios e igarapés gerados pelos eventos indiretos de erosão ou ainda podem estar relacionadas a descartes de efluentes”, diz o relatório.O estudo aponta ainda que três espécies de flora e quatro de aves potencialmente atingidos pelas obras são ameaçados de extinção, entre elas o tucano-de-papo-branco, o tucano-de-bico-preto, o choca-preta-e-cinza e o maracanã.Obra foi embargadaJá o prolongamento da rua da Marinha, num total de 3,4 quilômetros entre as avenidas Augusto Montenegro e Centenário, nas proximidades do aeroporto, atende a uma reivindicação antiga de militares instalados na região. Para duplicar a via, o governo do Estado está desmatando uma área de vegetação às margens da rua.No ano passado, a obra chegou a ser embargada pela Justiça, após uma ação do Ministério Público Estadual, mas o Tribunal do Pará acabou autorizando a sua continuidade.“Os militares, as diferentes forças, têm feito isso de uma maneira que eu considero muito irresponsável em relação à cidade, porque eles negociam essas áreas de reservas verdes, que têm uma importância ambiental para Belém gigantesca, e que depois viram shopping center, condomínio fechado de alto padrão”, constata Rodrigues.Os dois urbanistas mencionam ainda o plano de canalização da avenida Tamandaré, na área central. A proposta de criação de um parque linear ao longo do canal aposta em mais concreto, sem vegetalização, e desconsidera o potencial de mitigação dos riscos de inundações.“A gente está perdendo uma grande oportunidade de mudar alguns padrões, e usar não apenas a oportunidade em termos de captação de recursos – porque Belém nunca teve tanto dinheiro sendo investido ao mesmo tempo como agora –, mas para a gente fazer a mudança de chave que toda e qualquer cidade vai precisar fazer”, frisa a professora da UFPA.Governo do Pará e BNDES defendem sustentabilidade de projetosConsultados pela reportagem RFI, o governo do Estado e a Secretaria Extraordinária da COP30, ligada à Casa Civil, não responderam aos pedidos de entrevista. Em nota à RFI somente após a publicação do texto, a Secretaria de Comunicação do Estado do Pará alegou que "todas as ações estão sendo alinhadas com a UNFCCC [Convenção-Quadro da ONU sobre Mudanças Climáticas, que organiza a conferência], para atender aos interesses da organização e do Brasil, e visam não somente qualificar a capital paraense para o evento, mas garantir melhorias para as pessoas que vivem, trabalham ou visitam a região metropolitana de Belém"."A Rua da Marinha e a Avenida Liberdade, citadas na reportagem, fazem parte de um projeto de mobilidade que beneficia a vida de mais de 2 milhões de pessoas", diz a nota. "Todas as licenças para a execução de obras citadas na matéria foram emitidas pelos órgãos competentes, incluindo a supressão vegetal. As licenças contemplam medidas para assegurar a proteção da fauna e flora nativas", complementa. Já o BNDES garantiu que "os investimentos para a COP30 levam, sim, em consideração a sustentabilidade". "Importante dizer que a obra citada no texto, na Rua da Marinha, não tem recursos do BNDES, como esclarecido em entrevista coletiva no último dia 12, em Belém", diz a resposta enviada à redação pela assessoria de imprensa do banco."Pelo contrário, com uma das obras mais importante na cidade, o Banco está promovendo uma transformação histórica, com limpeza, urbanização e restauração completa de nove canais localizados nas Bacias do Tucunduba e Murutucu. Serão cerca de 300 mil pessoas beneficiadas (...), o maior projeto de urbanização integrada de comunidades e baixadas da história do BNDES".Belém leva negociadores a cidade "real"Apesar das falhas do planejamento, o urbanista Lucas Nassar defende a realização da conferência internacional na capital paraense. Ele lembra que o Brasil tem um histórico de conseguir mover as negociações: a Conferência Eco 92, no Rio de Janeiro, formatou as bases para as negociações climáticas, e em 2012 a Rio +20 desenhou os objetivos do desenvolvimento sustentável da ONU.Agora, o urbanista avalia que, ao trazer chefes de Estado e diplomatas do mundo todo para uma cidade “real” do sul global, a COP30 vai pressionar os participantes a chegar a resultados concretos face à emergência climática.“A gente vai fazer o evento mais importante de clima no planeta na cidade que tem estimativas de ser a segunda cidade com mais dias de calor extremo em 2050. Belém é uma cidade que está na costa e que se tivesse preservação da sua mata ou tivesse arborização, poderia diminuir 3ºC da sua temperatura – e é justamente 3ºC a estimativa de aumento da temperatura média da cidade”, ressalta Nassar. “Belém quase não tem esgotamento sanitário, tem infraestrutura urbana muito aquém da sua população, ou seja, ela mostra mais as condições nas quais a maior parte do mundo está vivendo hoje. Isso tem que ser considerado uma mensagem para o mundo”, avalia.Leia tambémO ano de 2025 será decisivo para o clima, em meio a um contexto internacional turbulento
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  • Inteligência artificial “frugal” busca limitar a disparada exponencial das emissões da tecnologia
    Em meio a uma concorrência mundial acirrada pelo desenvolvimento da inteligência artificial (IA), um grupo de países busca impulsionar o chamado uso “frugal” da tecnologia. A diminuição do impacto ambiental da IA foi um dos focos da Cúpula para a Ação sobre a Inteligência Artificial, sediado em Paris esta semana. A declaração final do evento foi clara: prega “uma inteligência artificial sustentável e inclusiva para a população e o planeta”. Os Estados Unidos, em pleno revés ambiental após o retorno de Donald Trump, não assinaram o comunicado, ao contrário de outros 61 países, entre eles o Brasil.Estima-se que a poluição digital pelo uso crescente da internet responda por 4% das emissões mundiais de gases de efeito estufa a cada ano. Mas a IA, em especial a generativa, alça este impacto a um patamar jamais visto, salienta Aurélie Bugeau, pesquisadora em Informática da Universidade de Bordeaux e uma das autoras do texto de referência da Agência Francesa de Normas sobre a inteligência artificial frugal. A França foi pioneira mundial em determinar, no ano passado, parâmetros para limitar o impacto ambiental da IA.“Já temos um crescimento exponencial só nessa fase de treinamentos dos modelos de IA generativa: do número de placas gráficas utilizadas, do consumo de energia. Portanto as emissões de gases de efeito estufa estão também em crescimento exponencial, assim como o esgotamento dos recursos abióticos, ou seja, não vivos, segue nessa mesma trajetória”, explica a especialista.Riscos x benefícios O tema pode ser visto sob dois prismas: se, por um lado, os data centers e os bilhões de cálculos realizados pela IA exigem um uso exponencial tanto de energia e água, quanto de matérias-primas, como metais raros, por outro o avanço da tecnologia oferece um manancial de oportunidades para melhorar a pegada de carbono nos mais variados setores.A IA pode ter aplicações concretas para ajudar a enfrentar os problemas ambientais, como impulsionar energias descarbonizadas, melhorar eficiência energética dos transportes e da agricultura, e assim, cortar emissões.Os seus avanços também poderão ser úteis para ser usada para prevenir enchentes, evitar o desperdício de recursos naturais, detectar escapamentos de metano na indústria fóssil, além de identificar irregularidades em diferentes atividades, como o desmatamento ou a pesca ilegais. Diversas iniciativas são descritas no coletivo Climate Change AI, alimentado por especialistas e pesquisadores.Entretanto, por enquanto, o lado mais visível da moeda é a disparada das emissões das grandes empresas de tecnologia: a Microsoft aumentou 30% entre 2020 e 2023, e a Google chegou a 48%, devido ao desenvolvimento de suas inteligências artificiais. Elas exigem uma alta significativa do consumo de energia para alimentar as máquinas, processadores e chips superpotentes, e de água para resfriar os data centers que abrigam as suas informações.Leia tambémNa corrida mundial pela IA, UE aposta em proteção de dados para se diferenciar de excessos de concorrentesNa Irlanda, os data centers podem, já em 2026, ser responsáveis por nada menos do que 30% do uso total de eletricidade no país. Para países como a França, a saída para compensar este impacto brutal é apostar na descarbonização da energia – mas isso não resolve o gargalo do uso excessivo de água para o resfriamento das infraestruturas.“As empresas alertam que é um verdadeiro desafio para elas conseguirem atingir a neutralidade de carbono que era visada para 2030, afinal a IA traz novos desafios. Por isso que esse imenso consumo de energia pode levar à reabertura de usinas nucleares, como nos Estados Unidos, sob o impulso da Microsoft”, nota Bugeau.'Não precisa de ChatGPT para encontrar um restaurante'A IA frugal aparece como uma espécie de guia para que empresas, governos e instituições busquem desenvolver e utilizar essa tecnologia, porém com os menores danos possíveis ao planeta – de modo que os benefícios da inteligência artificial se sobreponham aos riscos.“Tem muitas e muitas aplicações possíveis, mas hoje não existe, que eu saiba ou meus colegas saibam, avaliações completas sobre os ‘riscos’ versus ‘benefícios’ da IA para o meio ambiente. Por enquanto, as promessas são apenas promessas e pouco foi provado”, salienta Bugeau. “Nos faltam dados porque falta transparência, da parte dos industriais. Os pesquisadores são obrigados a estimar os dados, pois não têm informações completas sobre toda a cadeia da IA, da fabricação das máquinas passando pelo uso e o fim de vida delas, e que não são divulgadas.”A IA frugal também significa especificar melhor as diferentes utilizações da tecnologia – e inclui aceitar não utilizá-la sistematicamente, apesar das facilidades que ela traz. Segundo a Agência Internacional de Energia (AIE), a IA generativa consome 10 vezes de vezes mais energia por ser polivalente – combina outras inteligências artificiais especializadas, capazes de executar diferentes tarefas como procurar, traduzir, combinar, resumir, escrever e criar novos dados. Não é necessário recorrer a uma plataforma com capacidades gigantescas como ChatGPT para uma busca simples, que demanda muito menos dados para uma resposta satisfatória – portanto, exige menos infraestruturas e energia do que a gigante mundial da inteligência artificial generativa. “Você não precisa usar o ChatGPT para encontrar um bom restaurante”, disse a ministra francesa da Transição Ecológica, Agnès Pannier-Runacher, à emissora BFMTV.
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