Na corrida mundial pela IA, UE aposta em proteção de dados para se diferenciar de excessos de concorrentes
A expansão da inteligência artificial para os mais diversos campos torna a questão da regulamentação do seu uso cada vez mais urgente, em meio a uma concorrência mundial crescente. Espremida entre o controle estatal da China e a flexibilidade dos Estados Unidos, a Europa busca se diferenciar com uma IA protetora dos usuários – mesmo que este caminho a deixe para trás nesta corrida. A União Europeia adotou em 2024 a legislação mais completa do mundo sobre a tecnologia. O “respeito da vida dos cidadãos” está no foco do texto do IA Act, que impõe transparência sobre o seu uso, exigências de normas para áreas consideradas sensíveis, como educação e segurança, e até proibições de uso da IA quando for contrário aos valores europeus, a exemplo do sistema de notação de pessoas que existe na China.Enquanto isso, nos Estados Unidos, um dos primeiros atos da desregulamentação generalizada prometida pelo presidente Donald Trump foi reverter o frágil mecanismo que havia sido instaurado pelo ex-presidente Joe Biden em matéria de inteligência artificial.Este foi um dos principais temas debatidos na Cúpula para a Ação sobre a Inteligência Artificial, realizada em Paris nesta segunda e terça-feira. “Nós apoiamos a regulação: como se tem dito, a IA é importante demais para não ser regulada, mas deve ser regulada de forma inteligente”, disse a diretora global de Políticas de Concorrência do Google, Astri Van Dyke, em um painel do Business Day, evento paralelo da cúpula. “Temos que ter uma visão dos riscos e analisar setor por setor. Os riscos da IA na saúde serão diferentes do da indústria, por exemplo”, complementou. Já Adam Cohen, diretor de Impacto Econômico da OpenAi, considera que, neste momento de desenvolvimento da tecnologia, regras mais flexíveis favorecem o surgimento de novos players. “As regras e regimes de compliance podem criar obstáculos. Só para dar uma ideia de comparação, na OpenAI somos 2 mil colaboradores, o que é menos do que só o time jurídico do Google”, disse o executivo da criadora do ChatGPT. “Não temos o mesmo nível de recursos. O impacto que as obrigações podem ter é muito importante”, comentou.Regulação poder preservar a concorrência Solange Viegas dos Reis, diretora jurídica da OVHCloud, líder europeia em armazenamento de dados, afirma que um dos principais papeis da regulação é justamente proteger a concorrência justa. Representando um setor em que 70% do mercado é dominado por três big techs americanas (Amazon, Microsoft e Google), ela avalia que o mercado sozinho não garantirá essas salvaguardas.“A regulação não é automaticamente sinônimo de freio à competição. Se ela for adaptada, ela pode ajudar à competição”, observa. “Hoje, o que se passa é que tem uma diferença muito grande de capacidade de desenvolvimento entre empresas americanas e europeias – as grandes empresas da tech são americanas e as europeias são muito menores. Mas podemos ver que a regulação pode ajudar todo o tecido industrial e econômico a se desenvolver. E temos um diferencial importante, na comparação com os competidores, que é a proteção dos dados e a soberania sobre eles”, destaca.Solange compara as empresas de IA com as outras indústrias, dentre as quais muitas não se importam de recorrer ao trabalho infantil ou desrespeitar normas ambientais.“Não é porque, em certos países, a IA é feita num faroeste que devemos aceitá-la. Sabemos que o mercado europeu é importante para várias empresas no mundo inteiro, incluindo as americanas”, salientou. “Como o nosso mercado é importante, nós podemos impor regras que permitam acessá-lo. Essas regras têm que permitir que a atividade econômica flua com boas condições, mas também podem impedir que pessoas que venham do faroeste apliquem os métodos delas na Europa.”IA tem interesse em manter indústrias criativas O presidente da Autoridade da Concorrência francesa, Benoît Coeuré, disse que o risco é a IA se tornar uma gigantesca indústria da exploração de dados, na qual as grandes companhias captarão, legal ou legalmente, informais sigilosas ou protegidas por direitos autorais.“Nós temos que tomar cuidado para nos prevenir disso, e balancear os interesses da IA contra os de outros quesitos, inclusive sociais, mas também de propriedade intelectual, da indústria da mídia, da proteção privacidade e tantos outros. Essa discussão só começou e acredito que encontraremos um caminho a seguir”, frisou. “Estou confiante porque é do maior interesse das companhias de IA proteger a produção dos dados, seja de conhecimento, de música, de notícias, de filmes. O seu maior interesse de longo prazo vai ser proteger esse ecossistema criativo, do qual ela depende”, explicou. O presidente francês, Emmanuel Macron, defende que é essencial manter “a confiança” das pessoas na inteligência artificial e pregou uma “regulação mundial” desta tecnologia, embora tenha reconhecido que os excessos podem abalar o seu desenvolvimento.Governança inclusiva da IAO Brasil segue por essa linha: ao lado de Paris, Brasília é uma das 29 signatárias da Parceria Mundial pela Inteligência Artificial, promovida pela OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) para pregar boas práticas na utilização da tecnologia. Em uma mesa redonda da cúpula, o ministro das Relações Exteriores Mauro Vieira defendeu uma governança inclusiva da IA.“As Nações Unidas não devem estar apenas no centro das discussões sobre IA, mas no centro de qualquer iniciativa de tomada de decisão. Defendemos um diálogo aberto, equitativo e inclusivo, sempre reconhecendo as necessidades e prioridades de cada país, e acreditamos que a implementação do Pacto Digital Global deve estar no centro do nosso ‘road map’”, afirmou o chanceler.Vieira lembrou que a governança da inteligência artificial foi uma das prioridades da presidência brasileira do G20, no ano passado, e também será um dos principais objetivos da presidência do Brasil do Brics em 2025. “Os países do Sul Global precisarão ser ouvidos se quisermos alcançar soluções sustentáveis para problemas duradouros e evitar uma nova exclusão digital entre países de diferentes níveis de desenvolvimento”, evocou.No encerramento da cúpula, nesta terça (11), nem os Estados Unidos, nem o Reino Unido assinaram a proposta de comunicado final do evento, que defendeu uma “IA inclusiva e sustentável” do ponto de vista energético.