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Enterrados no Jardim

Podcast Enterrados no Jardim
Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho
Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho à conversa, leve ou mais pesarosamente, fundidos na bruma da época, dançando com fantasmas e aparições no nevoeiro sem fim qu...

Episódios Disponíveis

5 de 89
  • Espantar os limites da visão. Uma conversa com Carlos Vidal
    Talvez o homem seja esse animal trágico condenado a gerar os predadores que acabarão por lhe dar caça e levá-lo a uma submissão permanente ou, até, à extinção. Mas antes de dar forma a uma razão exterior, fomo-nos desprotegendo, expandindo o elemento sacrificial e degradante dos mais fracos pelos mais fortes, até nos condicionarmos a uma existência em que cada homem é o seu próprio inimigo, deixando-se inocular de um vírus que o destrói a partir de dentro. Pensemos como vivemos presos às imagens, dominados e sem nos podermos libertar do fascínio que estas exercem sobre nós, de tal modo que sacrificámos a nossa linguagem a elas. Num excerto da Imitação de Cristo, de Tomás de Kempis, pode ler-se isto: “Lembra-te amiúde do que diz o Eclesiastes: ‘o olho não se farta de ver nem o ouvido de ouvir’. Procura, pois, desprender o teu coração das coisas visíveis e afeiçoá-lo às invisíveis, porque os olhos que se entregam à sensualidade mancham a consciência e perdem a graça de Deus.” Vivemos encerrados, manietados por fantasias cada vez mais espúrias, delirando à beira da inconsciência, e até de forma cada vez mais ignara, sem nem nos sujeitarmos à inspiração e aos desafios que os antigos colocavam tentando alcançar e preencher o último horizonte, essa “orla mítica do mundo”. Cada vez mais inábeis na hora de nos lançarmos naquela exploração de que só uma imaginação treinada para tarefas de batedora dos mais ermos e improváveis terrenos é capaz, ficámos sujeitos a essa forma de câmbio da realidade pelas imagens, incapazes de recuperar uma experiência desta que produza um verdadeiro abalo dos sentidos e da inteligência. Num dos seus ensaios, Wagner lembrava como “nos vastos espaços do anfiteatro grego era a totalidade do povo que participava nas representações. Pelo contrário, nos nossos mais distintos teatros preguiçam apenas os ricos. Os Gregos iam buscar os materiais da sua arte aos produtos mais elevados da cultura comunitária. (…) O embotamento típico da educação contemporânea, na maior parte dos casos meramente orientada na perspectiva do lucro industrial, dá-nos uma satisfação idiota e simultaneamente orgulhosa da nossa inaptidão artística e ensina-nos a procurar os objectos da experiência estética fora de nós, aproximadamente com o mesmo tipo de desejo com que o depravado procura junto de uma prostituta um fugaz prazer amoroso.” Nos nossos dias, fomos abdicando da dificuldade e dos processos de enamoramento e sedução, desistindo desses aspectos de recriação a partir dos quais se funda uma identidade autónoma, sempre em relação com o outro, e traímos a busca do prazer por esse substituto mais certo que é a descarga de adrenalina. Formamo-nos como seres ansiosos, capturados por uma condição generalizada de anestesia na sequência de uma tensão contínua, e o remédio para todas as nossas crises passa por aumentar a dose desta realidade de substituição, acelerar o ritmo, intensificar os estímulos e o efeito de estimulação do sistema nervoso. Estamos sempre ligados, mas num presente que se arreda da vida, consumindo a própria ausência, sequências de imagens fugitivas, um mundo impossível de tocar ou saborear, e nos raros momentos em que nos afastamos, entramos numa espécie de ressaca que torna a realidade que não desapareceu nem foi devastada entretanto ainda mais desagradável para esses sentidos atrofiados pelos fluxos de neuro-estimulação. Uma verdadeira revolução hoje teria de começar por um corte geral dos sistemas de enervação, de modo a que a emoção de sentir um corpo próximo pudesse fazer-nos superar essas inibições que estão a gerar indivíduos cada vez mais isolados e indiferentes. Um dos mistérios mais cativantes do conhecimento que fazemos da realidade, e de que todos os grandes poetas em algum momento se dão conta, foi expresso por Heidegger quando notou que, quanto mais conhecidas se lhes tornam as coisas cognoscíveis, mais estranhas são e permanecem para eles. É como se o mundo preservasse o seu fascínio não admitindo a posse, mas instigando um elemento de errância, de busca incessante. A certa altura, as letras do mundo tornam-se etéreas, essas serifas de mármore, sólidas hastes erguidas nas rochas e postas nos ápices, e que ascendem como as colunas na história… Assim, da mesma forma como nos debruçamos tentando traduzir relevos antigos, também a carne pode beneficiar da mesma atenção minuciosa, fazendo de nós seres que empurram e se descobrem e transformam por meio de uma afeição delirante. Neste episódio, vamo-nos deter sobre as transformações que se têm operado ao nível da biopolítica e que têm constituído a mais severa ameaça que as democracias modernas alguma vez enfrentaram. Seguindo o diagnóstico da mutação antropológica que se tem operado a nível cognitivo, vamos procurar perceber como as imagens são as armas às quais temos vindo a sucumbir. Para nos guiar e expandir a perspectiva crítica sobre a degradação dos nossos contactos e percepções, Carlos Vidal juntou-se a nós. Artista, crítico e professor na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, tem uma extensa obra teórica que se detêm sobre a falibilidade da visão e tudo aquilo que faz de nós vítimas tão voluntárias das “aparições” espectaculares.
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    3:09:34
  • Mapa para não enlouquecer de vez. Uma conversa com Serena Cacchioli
    Um tipo passeia-se entre as ilhas e as estantes de uma livraria, abre os livros colocados em destaque, e nem a sensação tem de estar à janela, seguindo figuras em ponto pequeno lá em baixo, muito menos vultos que se deslocam noutra dimensão, antes parece que só vê cortinados. Há quem se delicie com os padrões, os bordados, como há quem prefira olhar para frutos num quadro, em vez de os ter numa cesta, à distância de um impulso. Às vezes, ao fim de umas frases, envelhecemos, a língua fica como um peso morto, incapaz de tocar com a ponta o céu da boca. Não há tédio como aquele que se sente perante um livro invariável, incapaz de deslocar sequer ligeiramente a nossa perspectiva. Ainda somos capazes de perdoar as noções disparatadas, aqueles humores absurdos, mas que um texto seja de tal modo insípido que não nos provoque outra sensação além de cansaço, isso, sim, nos parece imperdoável. Quando abrimos um livro, move-nos sem que o saibamos a imortalidade, e não menos fundamentalmente a insatisfação, essa busca de um sentido inesperado, capaz de mergulhar em aspectos raros da existência, trabalhando nalguma explicação engenhosa. O que menos nos apetece é sermos envolvidos numa toada mais ou menos arfante e indiferenciada, mas antes dar com um percurso que nunca faríamos por nós mesmos, precipitados por uma inteligência que nos faz mergulhar numa outra substância dos dias, subitamente intensificada, dando-nos acesso a elementos de ligação que, sem o sabermos, já existiam em nós próprios, mas não por uma ordem que nos permitisse exprimi-los. Lemos para nos distanciarmos de nós mesmos, para superarmos os vícios e as rotinas do nosso juízo, procurando aprofundar as grandes articulações do mundo. Não é bem a realidade que nos maça, mas esta habituação às nossas ideias, o que nos empurra para uma certa indiferença, cadências desgastantes. Estavas a meio disto, de nada, de ti próprio, quando alguém te ligou e quis saber como andas. Não havia nada que pudesses dizer. Às vezes há diálogos que se repetem uma e outra vez pelos séculos. Soluçaste: "O ócio é fatigante." E do outro lado, ouviste uma frase que em tempos copiaste para um caderno: "Isso acontece, como bem sabes, porque estando os demais ocupados, nos falta companhia; mas se todos fossem ociosos, nunca nos aborreceríamos; passaríamos o tempo a entreter-nos uns aos outros." Cada um deveria ser obrigado a sair de casa com duas ou três páginas de anotações e citações para infiltrar ao logo do dia nas conversas, mesmo que desse a sensação de estarmos a jogar à batalha naval, tentando afundar a frota uns dos outros. Se não for assim, nos dias que correm, não nos deparamos com desafios animadores nem imprevistos de espécie nenhuma. Esta falta de um sentido profundo contaminou tudo, corroeu os fundamentos, deixou o mundo da experiência exposto na sua fragilidade, deslassado, fragmentado. Não demorará muito para que metade da humanidade esteja rendida aos sistemas de inteligência artificial, e estes é que serão transplantados para esses corpos incapazes por si mesmos de sustentar uma conversa que cative, seduza ou faça estremecer seja quem for. Que competição poderemos oferecer a algoritmos afinados a cada interacção para estender ao infinito o loop de informações, sobretudo se as máquinas forem capazes de simular esses sinais de afeição que nós próprios já nem praticamos. Fala-se de uma praga de narcisistas, mas somos mais como seres que perderam o seu reflexo, que não mais se dedicaram a projecções e reinvenções de si mesmos. Parecemos contentes por ser exactamente como somos. Talvez não seja assim tão mau se as máquinas atravessarem esta carne, desde que possam restituir-nos essa dimensão fantasiosa dos reflexos que trocávamos, a trama de engates. Perseguidos até à extinção, nem já cupidos se avistam, e até as flores se tornaram uma forma de insulto, ou, quando em grande número, formando coroas, uma ameaça de morte. Alguns pesquisam e encomendam pacotes de sonhos no Google. Fode-se mais por recomendação dos cardiologistas, e para preservar velhas tradições, ou apenas para benefício das máquinas, uma vez que toda a perversão e os vícios voyeuristas ficaram do lado delas. A nós basta-nos a estimulação por impulsos eléctricos. Trocámos de lugar. Devoram a nossa literatura, os filmes, a música, esforçam os seus circuitos para produzirem ecos capazes de abalar os mortos. São elas que visitam os cemitérios, e choram pelos últimos que foram capazes de algum registo irrepetível. Já nós, não passamos de sequelas, e a tensão mortal continua a dissipar-se. Este episódio ainda é do tempo em que éramos estranhos para nós mesmos, em que tocávamos ao nosso próprio ombro, e repetíamos inseguramente os nossos próprios nomes. A Serena Cacchioli, tradutora para a gaveta, autora de um alfabeto de distâncias cosidas por sussurros, abdicou da noite de Dia de São Valentim para vir descoser a bainha da história que contamos uns aos outros sobre quem somos. Veio falar-nos de ter esquecido finalmente as razões porque trocou Itália pelo nosso país, talvez porque, a 90 dias de receber o cartão do cidadão luso, já não precise de um motivo, e seja tão portuguesa como qualquer um de nós, o que significa estar de algum modo resignada a viver à deriva, neste país que continua a ser só aquilo que o mar não quis.
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    3:46:47
  • Encontrar a nossa partitura física. Uma conversa com Cátia Terrinca
    Ainda que nos tenhamos tornado imensamente hábeis na hora de produzir diagnósticos da nossa época, aquilo que virá, vem e consegue sempre atingir-nos como um atropelo. O futuro surge sempre como um intruso, que abala as previsões, chega a escarnecer delas. Talvez isso funde o optimismo daqueles que vivem para o futuro como para uma vingança, mesmo que esta não possa ser encenada a seu favor. Pior seria se se acomodassem às coisas tal qual estas estão. Certa vez, enfrentando uma barragem de recriminações da parte da crítica soviética, avessa a qualquer esboço de lirismo e subjectividade, Maiakóvski defendeu-se com estas palavras: "Aqui se diz que no meu poema não se deve colher uma mensagem geral. Em primeiro lugar, li apenas trechos, mas já nesses trechos citados, há um único eixo importante: o viver quotidiano. Aquele viver em que nada muda, aquele viver que se manifesta hoje como o nosso pior inimigo e que faz de nós filisteus." Parecem ser cada vez mais aqueles que se entregam a uma relação fria, bastante cínica, com as noções, as ideias, as leituras que vão fazendo, a todo o momento servem-se de razões contra a acção, formulam sempre os seus conhecimentos de forma a conjugar-se com a rede de determinismos ou conformismos que vão erodindo o campo de possibilidades. Têm demasiada pressa em concluir que não há volta a dar, não há saída. O jornalista e ensaísta francês Vicent Cocquebert identifica uma pulsão difusa que se operou com a omnipresença dos meios digitais para uma forma de narcisismo à medida que, da cultura ao consumo, passando pelos lazeres e mesmo pelas relações sociais, nos transformámos em "grandes organizadores dos nossos mundinhos tecno-domésticos". "Estamos agora encolhidos dentro de nós mesmos e em luta permanente com um mundo que já não queremos mudar colectivamente, mas submeter à nossa vontade", diz-nos ele. "É como se, além de termos integrado as lógicas capitalistas da escolha e da rentabilidade em diversos domínios das nossas existências (sentimental, profissional, política), tivéssemos agora adoptado a postura do 'consumidor-senhor' dos nossos (minúsculos) reinos, nos quais o outro, quando não corresponde inteiramente às nossas expectativas, se torna inevitavelmente um obstáculo." Cocquebert traça aqui um regime de exclusão, a emergência de uma cultura do casulo, a qual tende a fazer-nos ver o exterior como exageradamente hostil, em vez de criar uma ligação dinâmica entre o indivíduo e a sociedade. Cada vez mais o mundo precisa pedir-nos licença, ficando sujeito a um intervalo cada vez mais dilatado, a largos períodos de quarentena, sendo submetido a uma série de actos de inspecção antes que lhe seja admitida qualquer interjeição. Ora, isto é precisamente o contrário da atitude de disponibilidade dos exploradores, daqueles que se alimentam da carne do acaso, desse tipo de criadores que gostam de sujeitar a imaginação às grandes derivas, e se mostram aptos a levar em conta a quantidade fantaástica de sons e formas que a cada passo das nossas vidas podemos captar. Nesse sentido, os poetas são menos os inventores do que espíritos que se acendem pela possibilidade de combinar e recombinar elementos e detalhes, todos os restos, ir investigar rastos, enxames, zumbidos... O motivo porque nos sentimos a desmoronar, incapazes de ser coerentes com nós próprios, de ligar por um fio os nossos gestos, tudo isso que leva a que nos sintamos dominados por uma vontade que nos estranha, aí surge uma patologia própria deste tempo: a sensação dolorosa de que as coisas nos fogem entre as mãos, a sensação de esmagamento provocada pela velocidade, pelo ruído, pela violência, a sensação de ansiedade, pânico, caos mental. Franco "Bifo" Berardi assinala como tudo isto provoca em nós uma crise dolorosa, uma série de sintomas que apontam para essa necessidade de procurar uma ordem para o mundo, um incentivo para construir uma ponte sobre o abismo da entropia, uma ponte entre várias mentes singulares. "É através desta conjugação que o sentido do mundo se vê evocado e posto em prática: semiose partilhada, respiração em consonância." Neste episódio, o guião desfez-se-nos nas mãos, mas demorámo-nos sobre a fragilidade que se sente hoje pela falta de coerência do mundo, ou pelo menos do esforço comum de projecção de um sentido. Cátia Terrinca, que tem desenvolvido um percurso ligado ao teatro e à performance, reivindica para si a condição de intérprete, não o mero abandono a um texto dramatúrgico, mas a sua interrogação, e veio falar connosco e assinalar o efeito da repetição para denunciar o tempo, como a experiência nasce de um cerco que se faz valer menos do que julgamos saber do que dos elementos de resistência que caracterizam um longo processo de digestão. Aí há margem não apenas para a intuição de uma infinitude de possibilidades, mas também para essa deriva que convoca o acaso e desdobra cada oportunidade numa situação de jogo.
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    2:35:29
  • Desamparados frente à noite. Uma conversa com Pedro Levi Bismarck
    Desta vez, subimos uns galhos para respirar outra coisa, para desoxidar a alma do imobilismo lisboeta, deram-nos margem para uma breve digressão, para ir saber a que distância ainda é possível estender a voz, desenterrar os ossos de alguns ecos, isto sendo certo que o exercício de um discurso crítico ou artístico só pode ter algum papel assim que se desenvencilhe de privilégios. Tende a ficar claro que, hoje, só o que está em fuga permanece, apenas aquilo que não se resolve diante de si mesmo, no sufoco do seu reflexo, só aquilo que absorve os elementos de discórdia ao seu redor, tem alguma possibilidade de se autonomizar face ao presente. Como alertava Heiner Müller, que quisemos arrastar na bagageira, as obras de arte tenderão a ser prisões e as obras-primas cúmplices do poder. Pelo contrário, bebendo a sua água feroz pelas mãos do quotidiano, os grandes textos “trabalham para a liquidação da sua autonomia, produto do deboche com a propriedade privada, trabalham para a expropriação e, em última análise, para o desaparecimento do autor”. Devemos cair nas coisas dos outros, viver a relação mais íntima, ser as pulgas insaciáveis da tradição e dos mortos, retomar-lhes os textos à semelhança deste inclemente montador, atacar os grandes reservatórios, alimentar a distância mais persuasiva, restaurar as propriedades perdidas, inventá-las. A propósito, eis uns versos de Novalis dedicados a um outro poeta que lhe permitiu uma visão de magnífica abertura: “Quando a chave de toda a criatura/ seja mais do que número e figura,/ e quando esses que beijam com os lábios,/ e os cantores, sejam mais que os sábios,/ e quando o mundo inteiro, intenso, vibre/ devolvido ao viver da vida livre,/ e quando luz e sombra, sempre unidas,/ celebrem núpcias íntimas, luzidas,/ quando em lendas e líricas canções/ escreverem a história das nações,/ então, a palavra misteriosa/ destruirá toda a essência mentirosa.” Hoje, e para efeitos de delimitação de zonas exclusivas, o próprio ar do tempo mal circula, vive-se segundo fórmulas de confinamento, e o espaço de comunicação representa cada vez mais uma unidade insonsa, toda uma estrutura putrescente cai sobre nós, e o sentido que este tempo busca resolve-se contra a memória, impregnando de mentiras e vícios a linguagem. A única promessa que se fazem os imbecis é que muito em breve já não haverá quem possa fazer a outro sentir o peso da vergonha, envergonhar-se seja do que for. Até nisso vamos perdendo o sentido do religioso, e mesmo aquela voluptuosidade que Novalis ligava em particular à religião cristã, notando que “o pecado é o maior atractivo do amor divino – quanto mais um homem se sente pecador, mais cristão é”. Mas em breve mesmo o sentido moral cairá inteiramente em desuso, esse sentido que ele nos diz ser contínuo ao poder criador absoluto, o da liberdade produtiva, da personalidade infinita, do microcosmos, da divindade real em nós. Hoje, pelo contrário, só resta a hiena, esse animal alegórico da matemática que, de acordo com Müller, sabe não haver resto e cujo deus é o zero. Em breve, não restará nada, nada a não ser a própria gramática da disputa, daqueles que se fazem a guerra mesmo por ninharias, e já o vemos nos supostos criadores, esse medo persistente dos que esperam fazer valer os seus títulos de propriedade no reino do espírito. Não haverá mais nada senão a própria escassez, o sentido da falta a incitar-nos aos gestos mais rudes e degradantes, a uma convivência ritmada pela agressão, a razão apenas instruída para devorar tudo, submeter tudo, alimentar-se da carne do outro. Não restará nada, nenhum sonho dentro do sonho, nem um sonho nosso para os mortos. Nem haverá grande necessidade de nomes, a linguagem será ela mesma a ilustração de um esmagamento, contracções sucessivas, e nem haverá orações nem túmulos, apenas o gasto inútil de quem se desfaz entre gritos. Ver um bando de homens amatilhados será a pior das imagens de terror para aqueles que estão em desvantagem. Nenhum nome os defenderá, nenhuma súplica será atendida. Neste episódio, além da respiração assistida que nos foi dada por aqueles que estiveram connosco e de um modo ou de outro participaram na discussão, pudemos desenhar em redor do tão instigante e sagaz percurso crítico de Pedro Levi Bismarck uma relação com as transformações que se estão a operar a grande velocidade nos nossos dias, desde logo um apertar do cerco em termos do uso de uma linguagem corrosiva, que constrange o pensamento e pretende esgotar as condições de existência, levar a uma exasperação dos elementos de representação e identificação. Arquitecto, editor do jornal Punkto, Bismarck é, entre nós, um dos mais pujantes e interventivos actores na produção de um discurso cheio de balanço e um fulgor que articula uma série de saberes de forma a interrogar uma cultura e um horizonte devastados pela predação económica e pela financeirização de todos os aspectos da vida social.
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    4:21:15
  • Associações de pastorícia cultural. Uma conversa com João Eça
    Que lindo cortejo de condenados este que nos é dado apreciar. Neste país todo ele em -inho, como já dizia o outro, também tínhamos de ter os nossos artistas, e as duas ou três agências de promoção, arranjos, prestígios e reputações forjadas do pé para a mão, montras, pódios, esse bando de alminhas condecoradas, sempre com toda a disponibilidade para ir, e depois todos esses aspirantes, como náufragos à espera da manhã, é verdadeiramente uma doçura, e mesmo um orgulho para todos nós. Onde quer que eles estejam, com os seus adereços de intimidade e de sonho, dá a sensação que podemos ir vê-los mesmo a meio das suas trajectórias estelares, de algum modo já nasceram no museu, no cinema, fazem tão bem de si mesmos, e os intelectuais nem se fala. Com aqueles ângulos rectos, aquela postura de embaixadores de nações inteiramente místicas, nunca atraiçoam o personagem, e dá a sensação de que poderiam entreter uma audiência até à morte. Apesar de tudo, há sempre uns que arranjam maneira de ficar desgostados, que se queixam que "a poesia cheira demasiado a poesia, a filosofia cheira demasiado a filosofia..., que uma e outra sofrem de uma redundância abominável (Baudrillard). Queixam-se da afectação do verbo, da afectação da profundidade", mas não percebem puto do grau de exigência com que estão comprometidos os nossos actores. Seria preciso educá-los. Felizmente, até para esses há esperança. O que não nos faltam são "anomalias", "oásis", "milagres", o nosso ecossistema cultural é uma colónia e um laboratório com espaço para as experiências mais arriscadas, um programa de simulação de utopias, revoluções a gosto, servindo-se dos pontos de intersecção entre várias disciplinas artísticas e do cruzamento de referências das mais diversas geografias e contextos para nos colocar diante de máquina de mundos. Tem-se detectado mesmo um efeito de contágio do talento, da inteligência e do ímpeto, e facilmente se pressente que estas visões, como um futuro mais ou menos próximo, fornece uma indemnização da vergonhosa miséria do presente. Por isso mesmo, em estado de delírio, os estudantes, hoje, acorrem à ZDB e outras das nossas instituições da consolação quando sentem necessidade de respirar o perfume desses prestígios ilusórios. É uma alegria sobretudo viver dos balanços do nosso jornalismo cultural, viver da vertigem daqueles filmes rebobinados, e que esteja lá o que estiver, parece sempre dinâmico, naquele ritmo celerado, e com uma fabulosa complacência perante todas as misérias. Os adolescentes portugueses estão nas tintas para o paraíso, eles querem é aparecer nas páginas do Ípsilon e dar largas à sua adorável propensão para consumir alienação beatamente. "Vivemos como crianças perdidas, as nossas aventuras incompletas", notou o Debord. Mas a verdade é que, para nós, isto já se foi tornando difícil. Dada a vasta e desenvolvida infantilização dos públicos, e o generalizado grau de submissão a que os indivíduos aparentemente na posse das suas faculdades mentais e até 'na flor da idade', ninguém se perde, ninguém se aventura, todos se descosem e justificam precisamente devido ao inconveniente de assumir posições arriscadas. Mas confiemos no Evangelho hipster que sai à sexta com o Público, e que nos garante que podemos encontrar bem aqui uma série de soluções de investimento para a nossa vaga inquietação, sendo que afinal o que importa não é bem o negócio nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio, o que importa pois claro é dar tudo de si e andar a "remendos e côdeas", mas não perder as sessões que nos oferece algum desses espaços "entre o tecido institucional e o experimental, potenciadores da produção artística local e nacional, ao mesmo tempo que estabelecem diálogos internacionais". Neste episódio juntou-se a nós João Eça, realizador de fitas malcriadas, amante da técnica de se lançar de pára-quedas em território inimigo e andar por ali a espevitar os ânimos e gerar desacatos, ladrão de pratos, remisturador de sons, empregado de mesa aqui e ali, consumidor médio de porrada, vencedor das últimas três edições do campeonato de devoradores de Natxos.
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    3:50:53

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Sobre Enterrados no Jardim

Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho à conversa, leve ou mais pesarosamente, fundidos na bruma da época, dançando com fantasmas e aparições no nevoeiro sem fim que nos cerca, tentando caçar essas ideias brilhantes que cintilam no escuro, ou descobrir a origem do odor a cadáver adiado, aquela tensão que subtilmente conduz ao silêncio, a censura que persiste neste ambiente que, afinal, continua a sua experiência para instilar em nós o medo puro. Vamos desenterrar, perfumar e puxar para o baile os nossos amigos enterrados no jardim, e deixar as covas abertas para empurrar lá para dentro aqueles que só aí andam a causar pavor e fazer da vida uma austera, apagada e vil tristeza.
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