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  • #207 – Especial: A cobertura jornalística na COP30
    No episódio de hoje, você escuta uma conversa um pouco diferente: um bate-papo com as pesquisadoras Germana Barata e Sabine Righetti, ambas do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor). Elas estiveram na COP30 e conversaram com Mayra Trinca sobre a experiência de cobrir um evento ambiental tão relevante e sobre quais foram os pontos fortes da presença da imprensa independente.  __________________________________________________________________________________ TRANSCRIÇÃO [música] Mayra: Olá, eu sou a Mayra, você já deve me conhecer aqui do Oxigênio. Hoje a gente vai fazer uma coisa um pouquinho diferente do que vocês estão acostumados. E eu trouxe aqui duas pesquisadoras do LabJor pra contar um pouquinho da experiência delas na COP30, que rolou agora em novembro. Então vai ser um episódio um pouco mais bate-papo, mas eu prometo que vai ficar legal. Vou pedir pra elas se apresentarem e a gente já começa a conversar. Então eu estou com a Germana Barata e a Sabine Righetti, que são pesquisadoras aqui do Labjor. Germana, se apresenta pra gente, por favor. Germana: Olá, pessoal, eu sou a Germana. Obrigada, Maíra, pelo convite pra estar aqui com vocês no Oxigênio. Eu sou pesquisadora do LabJor, do aula também por aqui, e tenho coordenado aí uma rede de comunicação sobre o oceano, que é a Ressou Oceano, que é o motivo da minha ida pra COP30.Então a gente vai ter a oportunidade de contar um pouquinho do que foi essa aventura na COP30. Mayra: Agora, Sabine, se apresenta pra gente, por favor. Sabine: Oi, pessoal, um prazer estar aqui. Sou pesquisadora aqui no LabJor, ouvinte do Oxigênio, e trabalho entendendo como que o conhecimento científico é produzido e circula na sociedade, sobretudo pela imprensa. Então esse foi um assunto central na COP lá em Belém. [vinheta]  Mayra: Eu trouxe a Sabine e a Germana, porque, bom, são pesquisadoras do Labjor que foram pra COP, mas pra gente conhecer um pouquinho o porquê que elas foram até lá a partir das linhas de interesse e de pesquisa. Então, meninas, contem pra gente por que vocês resolveram ir até a COP e o que isso está relacionado com as linhas de trabalho de vocês. Germana: Bom, acho que uma COP no Brasil, no coração da Amazônia, é imperdível por si.  Sabine: Não tinha como não ir.  Germana: Não, não tinha. E como eu atuo nessa área da comunicação sobre o oceano pra sociedade, esse é um tema que a comunidade que luta pela saúde do oceano tem trabalhado com muito afinco para que o oceano tenha mais visibilidade nos debates sobre mudanças climáticas. Então esse foi o motivo que eu percebi que era impossível não participar dessa grande reunião. Enfim, também numa terra onde eu tenho família, Belém do Pará é a terra do meu pai, e uma terra muito especial, uma cidade muito especial, eu acho que por tantos motivos era imperdível realmente essa experiência na COP. Sabine: Voltamos todas apaixonadas por Belém. O pessoal extremamente acolhedor, a cidade incrível, foi maravilhoso. Eu trabalho tentando compreender como a ciência, conhecimento científico, as evidências circulam na sociedade, na sociedade organizada. Então entre jornalistas, entre tomadores de decisão, entre grupos específicos. E no meu entendimento a COP é um espaço, é um grande laboratório sobre isso, porque a ciência já mostrou o que está acontecendo, a ciência já apontou, aliás faz tempo que os cientistas alertam, e que o consenso científico é muito claro sobre as mudanças climáticas. Então o que falta agora é essa informação chegar nos grupos organizados, nos tomadores de decisão, nas políticas públicas, e quem pode realmente bater o martelo e alterar o curso das mudanças climáticas. Claro que a gente precisa de mais ciência, mas a gente já sabe o que está acontecendo. Então me interessou muito circular e entender como que a ciência estava ou não. Porque muitos ambientes, as negociações, os debates, eles traziam mais desinformação ou falsa controvérsia do que a ciência em si. Germana: E é a primeira vez que a COP abrigou um pavilhão de cientistas. Então acho que esse é um marco, tanto para cientistas quanto outros pavilhões, outras presenças que foram inéditas ou muito fortes na COP, como dos povos indígenas ou comunidades tradicionais, mas também de cientistas, que antes, claro, os cientistas sempre foram para as COPs, mas iam como individualmente, vamos dizer assim. Sabine: Para a gente entender, quem não tem familiaridade com COP, os pavilhões, e isso eu aprendi lá, porque eu nunca tinha participado de uma COP, os pavilhões são como se fossem grandes estandes que têm uma programação própria e acontecem debates e manifestações, eventos diversos, culturais, enfim. Então a zona azul, que a gente chama, que é a área central da COP, onde tem as discussões, as tomadas de decisão, tem um conjunto de pavilhões. Pavilhões de países, pavilhões de temas. Oceanos também foi a primeira vez, né? Germana: Não foi a primeira vez, foi o terceiro ano, a terceira COP, mas estava enorme, sim, para marcar a presença. Mayra: O Oceano foi a primeira vez que estava na Blue Zone ou antes ele já estava na zona azul também? Germana: Ele já estava na Blue Zone, já estava na zona azul, é a terceira vez que o Oceano está presente como pavilhão, mas é a primeira vez que o Oceano realmente ocupou, transbordou, digamos assim, os debates, e os debates, incluindo o Oceano, acabaram ocupando, inclusive, dois dias oficiais de COP, que foram os dias 17 e 18, na programação oficial das reuniões, dos debates. Então é a primeira vez que eu acho que ganha um pouco mais de protagonismo, digamos assim. Mayra: E vocês participaram de quais pavilhões? Porque a gente tem o pavilhão dos Oceanos, tinha um pavilhão das universidades, que inclusive foi organizado por pesquisadores da Unicamp, não necessariamente aqui do Labjor, mas da Unicamp como um todo, e eu queria saber por quais pavilhões vocês passaram. Germana, com certeza, passou pelo do Oceano, mas além do Oceano, quais outros? Vocês passaram por esse das universidades? Como é que foi? Sabine: Eu apresentei um trabalho nesse contexto dos pavilhões, como espaço de discussão e de apresentações, eu apresentei um resultado de um trabalho que foi um levantamento de dados sobre ponto de não retorno da Amazônia com ajuda de inteligência artificial. Eu tenho trabalhado com isso, com leitura sistemática de artigos científicos com ajuda de inteligência artificial e tenho refletido como a gente consegue transformar isso numa informação palatável, por exemplo, para um tomador de decisão que não vai ler um artigo, muito menos um conjunto de artigos, e a gente está falando de milhares. Eu apresentei no pavilhão que a gente chamava de pavilhão das universidades que tinha um nome em inglês que era basicamente a Educação Superior para a Justiça Climática. Ele foi organizado institucionalmente pela Unicamp e pela Universidade de Monterrey, no México, e contou com falas e debates de vários cientistas do mundo todo, mas esse não era o pavilhão da ciência. Tinha o pavilhão da ciência e tinha os pavilhões dos países, os pavilhões temáticos, caso de oceanos, que a gente comentou. Então, assim, eu circulei em todos, basicamente. Me chamou muita atenção o dos oceanos, que de fato estava com uma presença importante, e o pavilhão da China, que era o maior dos pavilhões, a maior delegação, os melhores brindes. Era impressionante a presença da China e as ausências. Os Estados Unidos, por exemplo, não estava, não tinha o pavilhão dos Estados Unidos. Então, as presenças e as ausências também chamam a atenção.  Mayra: Tinha o pavilhão do Brasil?  Sabine: Tinha. Germana: Tinha um pavilhão maravilhoso.  Sabine: Maravilhoso e com ótimo café. Germana: É, exatamente.  Sabine: Fui lá várias vezes tomar um café.  Germana: Inclusive vendendo a ideia do Brasil como um país com produtos de qualidade,né, que é uma oportunidade de você divulgar o seu país para vários participantes de outros países do mundo. E acho que é importante a gente falar que isso, que a Sabine está falando dos pavilhões, era zona azul, ou seja, para pessoas credenciadas. Então, a programação oficial da COP, onde as grandes decisões são tomadas, são ali.  Mas tinha a zona verde, que também tem pavilhões, também tinha pavilhão de alguns países, mas, sobretudo, Brasil, do Estado do Pará, de universidades etc., que estava belíssimo, aberta ao público, e também com uma programação muito rica para pessoas que não necessariamente estão engajadas com a questão das mudanças… Sabine: Muito terceiro setor.  Germana: Exatamente.  Sabine: Movimentos sociais. Germana: E fora a cidade inteira que estava, acho que não tem um belenense que vai dizer o que aconteceu aqui essas semanas, porque realmente os ônibus, os táxis, o Teatro da Paz, que é o Teatro Central de Belém, todos os lugares ligados a eventos, mercados, as docas… Sabine: Museus com programação. Germana: Todo mundo muito focado com programação, até a grande sorveteria maravilhosa Cairu, que está pensando inclusive de expandir aqui para São Paulo, espero que em breve, tinha um sabor lá, a COP30. Muito legal, porque realmente a coisa chegou no nível para todos.  Mayra: O que era o sabor COP30? Fiquei curiosa.  Sabine: O de chocolate era pistache.  Germana: Acho que era cupuaçu, pistache, mais alguma coisa. Sabine: Por causa do verde. É que tinha bombom COP30 e tinha o sorvete COP30, que tinha pistache, mas acho que tinha cupuaçu também. Era muito bom. Germana: Sim, tinha cupuaçu. Muito bom! Mayra: Fiquei tentada com esse sorvete agora. Só na próxima COP do Brasil.  [música] Mayra: E para além de trabalho, experiências pessoais, o que mais chamou a atenção de vocês? O que foi mais legal de participar da COP? Germana: Eu já conheci a Belém, já fui algumas vezes para lá, mas fazia muitos anos que eu não ia. E é incrível ver o quanto a cidade foi transformada em relação à COP. Então, a COP deixa um legado para os paraenses. E assim, como a Sabine tinha dito no começo, é uma população que recebeu todos de braços abertos, e eu acho que eu estava quase ali como uma pessoa que nunca tinha ido para Belém. Então, lógico que a culinária local chama muito a atenção, o jeito dos paraenses, a música, que é maravilhosa, não só o carimbó, as mangueiras dando frutos na cidade, que é algo que acho que chama a atenção de todo mundo, aquelas mangas caindo pela rua. Tem o lado ruim, mas a gente estava vendo ali o lado maravilhoso de inclusive segurar a temperatura, porque é uma cidade muito quente. Mas acho que teve todo esse encanto da cultura muito presente numa reunião que, há muitos anos atrás, era muito diplomática, política e elitizada. Para mim, acho que esse é um comentário geral, que é uma COP que foi muito aberta a muitas vozes, e a cultura paraense entrou ali naturalmente por muitos lugares. Então, isso foi muito impressionante. Sabine: Concordo totalmente com a Germana, é uma cidade incrível. Posso exemplificar isso com uma coisa que aconteceu comigo, que acho que resume bem. Eu estava parada na calçada esperando um carro de transporte, pensando na vida, e aí uma senhora estava dirigindo para o carro e falou: “Você é da COP? Você está precisando de alguma coisa?” No meio da rua do centro de Belém. Olhei para ela e falei, Moça, não estou acostumada a ter esse tipo de tratamento, porque é impressionante. O acolhimento foi uma coisa chocante, muito positiva. E isso era um comentário geral. Mas acho que tem um aspecto que, para além do que estávamos falando aqui, da zona azul, da zona verde, da área oficial da COP, como a Germana disse, tinha programação na cidade inteira. No caso da COP de Belém, acho que aconteceu algo que nenhuma outra COP conseguiu proporcionar. Por exemplo, participei de um evento completamente lateral do terceiro setor para discutir fomento para projetos de jornalismo ligados à divulgação científica. Esse evento foi no barco, no rio Guamá que fala, né? Guamá. E foi um passeio de barco no pôr do sol, com comida local, com banda local, com músicos locais, com discussão local, e no rio. É uma coisa muito impressionante como realmente você sente a cidade. E aquilo tem uma outra… Não é uma sala fechada.Estamos no meio de um rio com toda a cultura que Belém oferece. Eu nunca vou esquecer desse momento, dessa discussão. Foi muito marcante. Totalmente fora da programação da COP. Uma coisa de aproveitar todo mundo que está na COP para juntar atores sociais, que a gente fala, por uma causa comum, que é a causa ambiental. Mayra: Eu vou abrir um parênteses e até fugir um pouco do script que a gente tinha pensado aqui, mas porque ouvindo vocês falarem, eu fiquei pensando numa coisa. Eu estava essa semana conversando com uma outra professora aqui do Labjor, que é a professora Suzana. Ouvintes, aguardem, vem aí esse episódio. E a gente estava falando justamente sobre como é importante trazer mais emoção para falar de mudanças climáticas. Enfim, cobertura ambiental, etc. Mas principalmente com relação a mudanças climáticas.  E eu fiquei pensando nisso quando vocês estavam falando. Vocês acham que trazer esse evento para Belém, para a Amazônia, que foi uma coisa que no começo foi muito criticada por questões de infraestrutura, pode ter tido um efeito maior nessa linha de trazer mais encanto, de trazer mais afeto para a negociação. Germana: Ah, sem dúvida.  Mayra: E ter um impacto que em outros lugares a gente não teria. Germana: A gente tem que lembrar que até os brasileiros desconhecem a Amazônia. E eu acho que teve toda essa questão da dificuldade, porque esses grandes eventos a gente sempre quer mostrar para o mundo que a gente é organizado, desenvolvido, enfim. E eu acho que foi perfeita a escolha. Porque o Brasil é um país desigual, riquíssimo, incrível, e que as coisas podem acontecer. Então a COP, nesse sentido, eu acho que foi também um sucesso, mesmo a questão das reformas e tudo o que aconteceu, no tempo que tinha que acontecer, mas também deu um tom diferente para os debates da COP30. Não só porque em alguns momentos da primeira semana a Zona Azul estava super quente, e eu acho que é importante quem é do norte global entender do que a gente está falando, de ter um calor que não é o calor deles, é um outro calor, que uma mudança de um grau e meio, dois graus, ela vai impactar, e ela já está impactando o mundo, mas também a presença dos povos indígenas eu acho que foi muito marcante. Eu vi colegas emocionados de falar, eu nunca vi tantas etnias juntas e populações muito organizadas, articuladas e preparadas para um debate de qualidade, qualificado. Então eu acho que Belém deu um outro tom, eu não consigo nem imaginar a COP30 em São Paulo. E ali teve um sentido tanto de esperança, no sentido de você ver quanto a gente está envolvida, trabalhando em prol de frear essas mudanças climáticas, o aquecimento, de tentar brecar realmente um grau e meio o aquecimento global. Mas eu acho que deu um outro tom. Sabine: Pegou de fato no coração, isso eu não tenho a menor dúvida. E é interessante você trazer isso, porque eu tenho dito muito que a gente só consegue colar mensagem científica, evidência, se a gente pegar no coração. Se a gente ficar mostrando gráfico, dado, numa sala chata e feia e fechada, ninguém vai se emocionar. Mas quando a gente sente a informação, isso a COP30 foi realmente única, histórica, para conseguir trazer esse tipo de informação emocional mesmo. [música] Mayra: E com relação a encontros, para gente ir nossa segunda parte, vocês encontraram muita gente conhecida daqui do Labjor, ou de outros lugares. O que vocês perceberam que as pessoas estavam buscando na COP e pensando agora em cobertura de imprensa? Porque, inclusive, vocês foram, são pesquisadoras, mas foram também junto com veículos de imprensa. Germana: Eu fui numa parceria com o jornal (o) eco, que a gente já tem essa parceria há mais de dois anos. A Ressou Oceano tem uma coluna no (o) eco. Portanto, a gente tem um espaço reservado para tratar do tema oceano. Então, isso para a gente é muito importante, porque a gente não tem um canal próprio, mas a gente estabeleça parcerias com outras revistas também. E o nosso objetivo realmente era fazer mais ou menos uma cobertura, estou falando mais ou menos, porque a programação era extremamente rica, intensa, e você acaba escolhendo temas onde você vai se debruçar e tratar. Mas, comparando com a impressão, eu tive na COP da biodiversidade, em 2006, em Curitiba, eu ainda era uma estudante de mestrado, e uma coisa que me chamou muito a atenção na época, considerando o tema biodiversidade, era a ausência de jornalistas do norte do Brasil. E, para mim, isso eu escrevi na época para o Observatório de Imprensa, falando dessa ausência, que, de novo, quem ia escrever sobre a Amazônia ia ser o Sudeste, e que, para mim, isso era preocupante, e baixa presença de jornalistas brasileiros também, na época.  Então, comparativamente, essa COP, para mim, foi muito impressionante ver o tamanho da sala de imprensa, de ver, colegas, os vários estúdios, porque passávamos pelos vários estúdios de TV, de várias redes locais, estaduais e nacionais. Então, isso foi muito legal de ver como um tema que normalmente é coberto por poucos jornalistas especializados, de repente, dando o exemplo do André Trigueiro, da Rede Globo, que é um especialista, ele consegue debater com grandes cientistas sobre esse tema, e, de repente, tinha uma equipe gigantesca, levaram a abertura dos grandes jornais para dentro da COP. Isso muda, mostra a relevância que o evento adquiriu. Também pela mídia, e mídia internacional, com certeza.  Então, posso falar depois de uma avaliação que fizemos dessa cobertura, mas, a princípio, achei muito positivo ver uma quantidade muito grande de colegas, jornalistas, e que chegou a quase 3 mil, foram 2.900 jornalistas presentes, credenciados. Sabine: E uma presença, os veículos grandes, que a Germana mencionou, internacionais, uma presença também muito forte de veículos independentes. O Brasil tem um ecossistema de jornalismo independente muito forte, que é impressionante, e, inclusive, com espaços consideráveis. Novamente, para entender graficamente, a sala de imprensa é gigantesca em um evento desse, e tem alguns espaços, algumas salas reservadas para alguns veículos. Então, veículos que estão com uma equipe muito grande têm uma sala reservada, além dos estúdios, de onde a Globo entrava ao vivo, a Andréia Sadi entrava ao vivo lá, fazendo o estúdio i direto da COP, enfim. Mas, dentro da sala de imprensa, tem salas reservadas, e algumas dessas salas, para mencionar, a Amazônia Vox estava com uma sala, que é um veículo da região norte de jornalismo independente, o Sumaúma estava com uma sala, o Sumaúma com 40 jornalistas, nessa cobertura, que também… O Sumaúma é bastante espalhado, mas a Eliane Brum, que é jornalista cofundadora do Sumaúma, fica sediada em Altamira, no Pará. Então, é um veículo nortista, mas com cobertura no país todo e, claro, com olhar muito para a região amazônica. Então, isso foi, na minha perspectiva, de quem olha para como o jornalismo é produzido, foi muito legal ver a força do jornalismo independente nessa COP, que certamente foi muito diferente. Estava lá o jornalismo grande, comercial, tradicional, mas o independente com muita força, inclusive alguns egressos nossos no jornalismo tradicional, mas também no jornalismo independente. Estamos falando desde o jornalista que estava lá pela Superinteressante, que foi nossa aluna na especialização, até o pessoal do Ciência Suja, que é um podcast de jornalismo independente, nosso primo aqui do Oxigênio, que também estava lá com um olhar muito específico na cobertura, olhando as controvérsias, as falsas soluções. Não era uma cobertura factual. Cada jornalista olha para aquilo tudo com uma lente muito diferente. O jornalismo independente, o pequeno, o local, o grande, o internacional, cada um está olhando para uma coisa diferente que está acontecendo lá, naquele espaço em que acontece muita coisa. [som de chamada]  Tássia: Olá, eu sou a Tássia, bióloga e jornalista científica. Estou aqui na COP30, em Belém do Pará, para representar e dar voz à pauta que eu trabalho há mais de 10 anos, que é o Oceano.  Meghie: Oi, gente, tudo bem? Meu nome é Meghie Rodrigues, eu sou jornalista freelancer, fui aluna do Labjor. Estamos aqui na COP30, cobrindo adaptação. Estou colaborando com a Info Amazônia, com Ciência Suja. Pedro: Oi, pessoal, tudo bem? Eu sou Pedro Belo, sou do podcast Ciência Suja, sou egresso do LabJor, da turma de especialização. E a gente veio para cobrir um recorte específico nosso, porque a gente não vai ficar tanto em cima do factual ali, do hard news, das negociações. A gente veio buscar coisas que, enfim, picaretagens, coisas que estão aí, falsas soluções para a crise climática. Paula: Eu sou Paula Drummond, eu sou bióloga e eu fiz jornalismo científico. Trabalho nessa interface, que é a que eu sempre procurei, de ciência tomada de decisão, escrevendo policy briefs. [música]  Mayra: Acho que esse é um ponto forte para tratarmos aqui, que vai ser o nosso encerramento, falar um pouco da importância desses veículos independentes na COP, tanto do ponto de vista de expandir a cobertura como um todo, da presença mesmo de um grande número de jornalistas, quanto das coberturas especializadas. Então, eu queria saber qual é a avaliação que vocês fizeram disso, se vocês acham que funcionou, porque a gente teve muita crítica com relação à hospedagem, isso e aquilo. Então, ainda tivemos um sucesso de cobertura de imprensa na COP? Isso é uma pergunta. E por que é importante o papel desses veículos independentes de cobertura? Germana: Eu, falando por nós, da Ressoa Oceano, o Oceano é ainda pouco coberto pela mídia, mas a gente já vê um interesse crescente em relação às questões específicas de oceano, e quem nunca ouviu falar de branqueamento de corais, de aquecimento das águas, elevação do nível do oceano? Enfim, eu acho que essas questões estão entrando, mas são questões que não devem interessar apenas o jornalista especializado, que cobre meio ambiente, que cobre essas questões de mudanças climáticas, mas que são relevantes para qualquer seção do jornal. Então, generalistas, por exemplo, que cobrem cidades, essa questão das mudanças climáticas, de impactos etc., precisam se interessar em relação a isso.  Então, o que eu vejo, a gente ainda não fez uma análise total de como os grandes veículos cobriram em relação ao jornalismo independente, que é algo que a gente está terminando de fazer ainda, mas em relação ao oceano. Mas o que a gente vê é que as questões mais políticas, e a grande mídia está mais interessada em que acordo foi fechado, os documentos finais da COP, se deu certo ou não, o incêndio que aconteceu, se está caro ou não está caro, hospedagem etc., e que são pautas que acabam sendo reproduzidas, o interesse é quase o mesmo por vários veículos. O jornalismo independente traz esse olhar, que a Sabine estava falando, inclusive dos nossos alunos, que são olhares específicos e muito relevantes que nos ajudam a entender outras camadas, inclusive de debates, discussões e acordos que estavam ocorrendo na COP30. Então, a gente vê, do ponto de vista quase oficial da impressão geral que as pessoas têm da COP, que foi um desastre no final, porque o petróleo não apareceu nos documentos finais, na declaração de Belém, por exemplo, que acho que várias pessoas leram sobre isso. Mas, quando a gente olha a complexidade de um debate do nível da COP30, e os veículos independentes conseguem mostrar essas camadas, é mostrar que há muitos acordos e iniciativas que não necessitam de acordos consensuais das Nações Unidas, mas foram acordos quase voluntários, paralelos a esse debate oficial, e que foram muito importantes e muito relevantes, e que trouxeram definições que marcaram e que a gente vê com muito otimismo para o avanço mesmo das decisões em relação, por exemplo, ao mapa do caminho, que a gente viu que não estava no documento final, mas que já tem um acordo entre Colômbia e Holanda de hospedar, de ter uma conferência em abril na Colômbia para decidir isso com os países que queiram e estejam prontos para tomar uma decisão. Então, esse é um exemplo de algo que foi paralelo à COP, mas que trouxe muitos avanços e nos mostra outras camadas que o jornalismo independente é capaz de mostrar. Sabine: A cobertura jornalística de um evento como a COP é muito, muito difícil. Para o trabalho do jornalista, é difícil porque são longas horas por dia, de domingo a domingo, são duas semanas seguidas, é muito desgastante, mas, sobretudo, porque é muita coisa acontecendo ao mesmo tempo e é difícil entender para onde você vai. Novamente, ilustrando, na sala de imprensa tem, e todo grande evento com esse caráter costuma ter isso, umas televisões com anúncios. Vai ter tal coletiva de imprensa do presidente da COP, tal horário. Então, nessa perspectiva, dá para se organizar. Eu vou aqui, eu vou ali. Às vezes, é hora de almoço, e, na hora de almoço, o jornalista já vai, sem almoçar, escrever o texto, e, quando vê, já é a noite. Mas você vai se organizando. Só que tem coisas que não estão lá na televisão. Então, por exemplo, passou o governador da Califórnia por lá. Não foi anunciado que ele estava. Ele estava andando no corredor. Para um jornalista de um grande veículo, se ele não viu que o governador da Califórnia estava lá, mas o seu concorrente viu, isso, falo no lugar de quem já trabalhou num veículo jornalístico grande comercial, isso pode levar a uma demissão. Você não pode não ver uma coisa importante. Você não pode perder uma declaração de um chefe de Estado. Você não pode não ver que, de repente, a Marina parou no meio do corredor em um quebra-queixo e falou, a Marina Silva, que estava muito lá circulando, e falou alguma coisa. Então, a cobertura vai muito além do que está lá na programação da sala de imprensa e do que está nos debates, nos pavilhões que a gente mencionava. Então, o jornalista, como a Germana disse, jornalista dos veículos, está correndo atrás disso. E, muitas vezes, por essa característica, acaba se perdendo, entre grandes aspas, nesses acontecimentos. Por exemplo, o que ficou muito marcante para mim na COP foi a declaração do primeiro-ministro da Alemanha, que foi uma declaração desastrosa, mas que tomou pelo menos um dia inteiro da cobertura, porque acompanhei na sala de imprensa os colegas jornalistas tentando repercutir aquela fala. Então, tentando falar com o governo do Brasil, com o presidente da COP, com outros alemães, com a delegação da Alemanha, com o cientista da Alemanha, porque eles precisavam fomentar aquilo e repercutir aquilo. E foi um dia inteiro, pelo menos, um dia inteiro, diria que uns dois dias ou mais, porque até a gente voltar, ainda se falava disso, vai pedir desculpa ou não. Para quem não lembra, foi o primeiro-ministro que falou que ainda bem que a gente saiu daquele lugar, que era Belém, que ele estava com um grupo de jornalistas da Alemanha, que ninguém queria ficar lá. Enfim, um depoimento desastroso que tomou muito tempo de cobertura. Então, os jornalistas independentes não estavam nem aí para a declaração do primeiro-ministro da Alemanha. Eles queriam saber outras coisas.  Então, por isso, reforço a necessidade e a importância da diversidade na cobertura. Mas é importante a gente entender como funciona esse jornalismo comercial, que é uma pressão e é um trabalho brutal e, muitas vezes, de jornalistas que não são especializados em ambiente, que estão lá, a Germana mencionou, na cobertura de cidades e são deslocados para um evento tipo a COP30. Então, é difícil até entender para onde se começa. É um trabalhão. [música]  Mayra: E aí, para encerrar, porque o nosso tempo está acabando, alguma coisa que a gente ainda não falou, que vocês acham que é importante, que vocês pensaram enquanto a gente estava conversando de destacar sobre a participação e a cobertura da COP? Germana: Tem algo que, para mim, marcou na questão da reflexão mesmo de uma conferência como essa para o jornalismo científico ou para os divulgadores científicos. Embora a gente tenha encontrado com vários egressos do Labjor, que me deixou super orgulhosa e cada um fazendo numa missão diferente ali, eu acho que a divulgação científica ainda não acha que um evento como esse merece a cobertura da divulgação científica.  Explico, porque esse é um evento que tem muitos atores sociais. São debates políticos, as ONGs estão lá, os ambientalistas estão lá, o movimento social, jovem, indígena, de comunidades tradicionais, os grandes empresários, a indústria, enfim, prefeitos, governadores, ministros de vários países estão lá. Eu acho que a divulgação científica ainda está muito focada no cientista, na cientista, nas instituições de pesquisa e ensino, e ainda não enxerga essas outras vozes como tão relevantes para o debate científico como a gente vê esses personagens. Então, eu gostaria de ter visto outras pessoas lá, outros influenciadores, outros divulgadores, ainda mais porque foi no Brasil, na nossa casa, com um tema tão importante no meio da Amazônia, que as mudanças climáticas estão muito centradas na floresta ainda. Então, isso, eu tenho um estranhamento ainda e talvez um pedido de chamar atenção para os meus colegas divulgadores de ciência de que está na hora de olharmos para incluir outras vozes, outras formas de conhecimento. E as mudanças climáticas e outras questões tão complexas exigem uma complexidade no debate, que vai muito além do meio científico. Sabine: Não tinha pensado nisso, mas concordo totalmente com a Germana. Eu realmente não… senti a ausência. Eu estava falando sobre as ausências. Senti a ausência dos divulgadores de ciência produzindo informação sobre algo que não necessariamente é o resultado de um paper, mas sobre algo que estava sendo discutido lá. Mas eu voltei da COP com uma reflexão que é quase num sentido diferente do que a Germana trouxe, que a Germana falou agora dos divulgadores de ciência, que é um nicho bem específico. E eu voltei muito pensando que não dá para nós, no jornalismo, encaixar uma COP ou um assunto de mudanças climáticas em uma caixinha só, em uma caixinha ambiental. E isso não estou falando, tenho que dar os devidos créditos. Eu participei de um debate ouvindo Eliane Brum em que, novamente a cito aqui no podcast, em que ela disse assim que a Sumaúma não tem editorias jornalísticas, como o jornalismo tradicional, porque isso foi uma invenção do jornalismo tradicional que é cartesiano. Então tem a editoria de ambiente, a editoria de política, a editoria de economia. E que ela, ao criar a Sumaúma, se despiu dessas editorias e ela fala de questões ambientais, ponto, de uma maneira investigativa, que passam por ciência, passam por ambiente, passam por política, passam por cidade, passam por tudo. E aí eu fiquei pensando muito nisso, no quanto a gente, jornalismo, não está preparado para esse tipo de cobertura, porque a gente segue no jornalismo tradicional colocando os temas em caixinhas e isso não dá conta de um tema como esse. Então a minha reflexão foi muito no sentido de a gente precisar sair dessas caixinhas para a gente conseguir reportar o que está acontecendo no jornalismo. E precisa juntar forças, ou seja, sair do excesso de especialização, do excesso de entrevista política, eu só entrevisto cientista. Mas eu só entrevisto cientista, não falo com política e vice-versa, que o jornalismo fica nessas caixinhas. E acho que a gente precisa mudar completamente o jeito que a gente produz informação. [música]  Mayra: Isso, muito bom, gostei muito, queria agradecer a presença de vocês no Oxigênio nesse episódio, agradecer a disponibilidade para conversar sobre a COP, eu tenho achado muito legal conversar com vocês sobre isso, tem sido muito interessante mesmo, espero que vocês tenham gostado também desse episódio especial com as pesquisadoras aqui sobre a COP e é isso, até a próxima! Sabine: Uma honra! Germana: Obrigada, Mayra, e obrigada a quem estiver nos ouvindo, um prazer! Mayra: Obrigada, gente, até mais!  [música]  Mayra: Esse episódio foi gravado e editado por mim, Mayra Trinca, como parte dos trabalhos da Bolsa Mídia Ciência com o apoio da FAPESP. O Oxigênio também conta com o apoio da Secretaria Executiva de Comunicação da Unicamp. A trilha sonora é do Freesound e da Blue Dot Sessions. [vinheta de encerramento] 
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  • #206 – Traduzir a Antiguidade: memória e política nos textos greco-romanos
    Você já parou pra pensar quem traduz os livros que você lê e como esse trabalho molda a forma como entende o mundo? Neste episódio, Lívia Mendes e Lidia Torres irão nos conduzir em uma viagem no tempo para entendermos como os textos gregos e latinos chegam até nós. Vamos descobrir por que traduzir é sempre também interpretar, criar e disputar sentidos. Conversamos com Andrea Kouklanakis, professora permanente na Hunter College, Nova York, EUA, e Guilherme Gontijo Flores, professor da Universidade Federal do Paraná. Eles compartilharam suas trajetórias no estudo de línguas antigas, seus desafios e descobertas com o mundo da tradução e as questões políticas, históricas e estéticas que a prática e as teorias da tradução abarcam. Esse episódio faz parte do trabalho de divulgação científica que a Lívia Mendes desenvolve no Centro de Estudos Clássicos e Centro de Teoria da Filologia, vinculados ao Instituto de Estudos da Linguagem e ao Instituto de Estudos Avançados da Unicamp, financiado pelo projeto Mídia Ciência da FAPESP, a quem agradecemos pelo financiamento. O roteiro foi escrito por Lívia Mendes e a revisão é de Lidia Torres e Mayra Trinca. A edição é de Daniel Rangel. Se você gosta de literatura, história, tradução ou quer entender novas formas de aproximar o passado do presente, esse episódio é pra você. __________________________________________________________________ ROTEIRO [música, bg] Lívia: Quem traduziu o livro que você está lendo? Lívia: E se você tivesse que aprender todas as línguas dos clássicos que deseja ler? Aqueles livros escritos em russo, alemão ou qualquer outra língua diferente da sua? Lívia: E aqueles livros das literaturas que foram escritas em línguas que chamamos antigas, como o latim e o grego? Lidia: A verdade é que, na maioria das vezes, a gente não pensa muito sobre essas questões. Mas, no Brasil, boa parte dos livros que lemos, tanto literários quanto teóricos, não chegaria até a gente se não fossem os tradutores. Lidia: Essas obras, que fazem parte de todo um legado social, filosófico e cultural da nossa sociedade, só chegaram até nós por causa do trabalho cuidadoso de pesquisadores e tradutores dessas línguas, que estão tão distantes, mas ao mesmo tempo, tão próximas de nós. [música de transição] Lívia: Eu sou a Lívia Mendes. Lidia: E eu sou a Lidia Torres. Lívia: Você já conhece a gente aqui do Oxigênio e no episódio de hoje vamos explorar como traduzimos, interpretamos e recebemos textos da Antiguidade greco-romana. Lidia: E, também vamos pensar por que essas obras ainda hoje mobilizam debates políticos, culturais e estéticos. Lívia: Vem com a gente explorar o mundo da antiguidade greco-romana que segue tão presente na atualidade, especialmente por meio da tradução dos seus textos. [vinheta O2] Andrea [1:05-2:12]: Então, meu nome é Andrea Kouklanakis e, eu sou brasileira, nasci no Brasil e morei lá até 21 anos quando eu emigrei para cá. Lívia: O “cá” da Andrea é nos Estados Unidos, país que ela se mudou ainda em 1980, então faz um tempo que ela mora fora do Brasil. Mas mesmo antes de se mudar, ela já tinha uma experiência com o inglês. Andrea Kouklanakis: Quando eu vim pra cá, eu não tinha terminado faculdade ainda, eu tinha feito um ano e meio, quase dois anos na PUC de São Paulo. Ah, e mas chegou uma hora que não deu mais para arcar com a responsabilidade financeira de matrícula da PUC, de mensalidades, então eu passei um tempo trabalhando só, dei aulas de inglês numa dessas escolas assim de business, inglês pra business people e que foi até legal, porque eu era novinha, acho que eu tinha 18, 19 anos e é interessante que todo mundo era mais velho que eu, né? Os homens de negócios, as mulheres de negócio lá, mas foi uma experiência legal e que também, apesar de eu não poder estar na faculdade daquela época, é uma experiência que condiz muito com o meu trabalho com línguas desde pequena. Lívia: Essa que você ouviu é a nossa primeira entrevistada no episódio de hoje, a professora Andrea Kouklanakis. Como ela falou ali na apresentação, ela se mudou ainda jovem pros Estados Unidos. Lidia: E, como faz muito tempo que ela se comunica somente em inglês, em alguns momentos ela acaba esquecendo as palavras em português e substitui por uma palavra do inglês. Então, a conversa com a Andrea já é um início pra nossa experimentação linguística neste episódio. Andrea Kouklanakis: Eu sou professora associada da Hunter College, que faz parte da cidade universitária de Nova York, City University of New York. E eles têm vários campus e a minha home college é aqui na Hunter College, em Manhattan. Eh, eu sou agora professora permanente aqui. Lívia: A professora Andrea, que conversou com a gente por vídeo chamada lá de Nova Iorque, contou que já era interessada por línguas desde pequena. A mãe dela trabalhava na casa de uma professora de línguas, com quem ela fez as primeiras aulas. E ela aprendeu também algumas palavras da língua materna do seu pai, que é grego e mais tarde, estudou francês e russo na escola. Lidia: Mas, além de todas essas línguas, hoje ela trabalha com Latim e Grego.Como será que essas línguas antigas entraram na vida da Andrea? Andrea Kouklanakis: Então, quando eu comecei aqui na Hunter College, eu comecei a fazer latim porque, bom, quando você tem uma língua natal sua, você é isenta do requerimento de línguas, que todo mundo tem que ter um requerimento de língua estrangeira na faculdade aqui. Então, quando eu comecei aqui, eu fiquei sabendo, que eu não precisava da língua, porque eu tinha o português. Mas, eu falei: “É, mas eu peguei pensando a língua é o que eu quero, né?” Então, foi super assim por acaso, que eu tava olhando no catálogo de cursos oferecidos. Aí eu pensei: “Ah, Latim, OK. Why not?. Por que não, né? Uma língua antiga, OK. Lívia: A professora Andrea, relembrando essa escolha por cursar as disciplinas de Latim, quando chegou na Hunter College, percebeu que ela gostou bastante das aulas por um motivo afetivo e familiar com a maneira com que ela tinha aprendido a língua portuguesa aqui no Brasil, que era diferente da forma como seus colegas estadunidenses tinham aprendido o inglês, sem muita conexão com a gramática. Lidia: Ela gostava de estudar sintaxe, orações subordinadas e todas essas regras gramaticais, que são muito importantes pra quem quer estudar uma língua antiga e mais pra frente a gente vai entender bem o porquê. [som de ícone] Lívia: sintaxe, é a parte da gramática que estuda como as palavras se organizam dentro das frases pra formar sentidos. Ela explica quem é o sujeito, o que é o verbo, quais termos completam ou modificam outros, e assim por diante. [som de ícone]: Lívia: Oração subordinada é uma frase que depende de outra para ter sentido completo. Ela não “anda sozinha”: precisa da oração principal pra formar o significado total. [música de transição] Lidia: E, agora, você deve estar se perguntando, será que todo mundo que resolve estudar língua antiga faz escolhas parecidas com a da professora Andrea? Lidia: É isso que a gente perguntou pro nosso próximo entrevistado. Guilherme Gontijo: Eu sou atualmente professor de latim na UFPR, no Paraná, moro em Curitiba. Mas, eu fiz a minha graduação em letras português na UFES, na Federal do Espírito Santo. E lá quando eu tive que fazer as disciplinas obrigatórias de latim, eu tinha que escolher uma língua complementar, eu lembro que eu peguei italiano porque eu estudava francês fora da universidade e eu tinha que estudar o latim obrigatório. Estudei latim com Raimundo Carvalho. Lívia: Bom, parece que o Guilherme teve uma trajetória parecida com a da Andrea e gostar de estudar línguas é uma das premissas pra se tornar um estudioso de latim e de grego. Lidia: O professor Raimundo de Carvalho, que o Guilherme citou, foi professor de Latim da Federal do Espírito Santo. Desde a década de 80 ele escreve poesias e é um importante estudioso da língua latina. Ele quem traduziu a obra Bucólicas, do Vírgílio, um importante poeta romano, o autor da Eneida, que talvez você já deva ter ouvido falar. O professor Raimundo se aposentou recentemente, mas segue trabalhando na tradução de Metamorfoses, de outro poeta romano, o Ovídio. Lívia: O Guilherme contou o privilégio que foi ter tido a oportunidade de ser orientado de perto pelo professor Raimundo. Guilherme Gontijo: Eu lembro que eu era um aluno bastante correto, assim, eu achava muito interessante aprender latim, mas eu estudei latim pensando que ele teria algum uso linguístico pras pessoas que estudam literatura brasileira. E quando ele levou Catulo pra traduzir, eu lembro de ficar enlouquecido, assim, foi incrível e foi a primeira vez na minha vida que eu percebi que eu poderia traduzir um texto de poema como um poema. E isso foi insistivo pra mim, eu não tinha lido teoria nenhuma sobre tradução. Lívia: Um episódio sobre literatura antiga traz esses nomes diferentes, e a gente vai comentando e explicando. O Catulo, que o Guilherme citou, foi um poeta romano do século I a.C.. Ele é conhecido por escrever odes, que são poemas líricos que expressam admiração, elogio ou reflexão sobre alguém, algo ou uma ideia. A obra do Catulo é marcada pelos poemas que ele dedicou a Lésbia, figura central de muitos dos seus versos. Guilherme Gontijo: Eu fiz as duas disciplinas obrigatórias de latim, que é toda a minha formação oficial de latim, acaba aí. E passei a frequentar a casa do Raimundo Carvalho semanalmente, às vezes duas vezes por semana, passava a tarde inteira tendo aula de latim com ele, lendo poetas romanos ou prosa romana e estudava em casa e ele tirava minhas dúvidas. Então, graças à generosidade do Raimundo, eu me tornei latinista e eu não tinha ideia que eu, ainda por cima, teria ali um mestre, porque ele é poeta, é tradutor de poesia. Lidia: Essa conexão com a língua latina fez o Guilherme nunca mais abandonar a tradução. Ele disse que era uma forma natural de conseguir conciliar o seu interesse intelectual acadêmico e o lado criativo, já que desde o início da graduação ele já era um aspirante a poeta. Lívia: É importante a gente lembrar que o Guilherme tem uma vasta carreira como autor, poeta e tradutor e já vamos aproveitar pra deixar algumas dicas dos livros autorais e dos autores que ele traduziu. Lívia: Guilherme é autor dos poemas de carvão :: capim (2018), Todos os nomes que talvez tivéssemos (2020), Arcano 13 em parceria com Marcelo Ariel. Ele também escreveu o romance História de Joia (2019) e os livros de ensaios Algo infiel: corpo performance tradução (2017) em parceria com Rodrigo Gonçalves e A mulher ventriloquada: o limite da linguagem em Arquíloco (2018). Se aventurou pelo infanto-juvenil com os livros A Mancha (2020) e o Coestelário (2021), ambos em parceria com Daniel Kondo. E traduziu autores como Safo, Propércio, Catulo, Horácio, Rabelais e Whitman. Lidia: Os poetas Rabelais e Whitman são autores modernos, viveram nos séculos XVI e XIX, já os outros poetas são da antiguidade romana, aquele período aproximadamente entre o século IV a.C. e o século V d.C. Lívia: Então, o Guilherme traduz tanto textos de línguas modernas quanto de línguas antigas. E, a gente perguntou pra ele se existe alguma diferença no trabalho do tradutor quando vai traduzir um texto de uma língua moderna, que está mais próxima de nós no tempo, e quando vai traduzir do latim ou do grego, que são línguas mais distantes temporalmente. Lívia: O Guilherme falou que quando ele vai traduzir de uma língua moderna pra outra língua moderna existem duas possibilidades: traduzir diacronicamente, que é quando o tradutor escreve o texto na língua produzida como se fosse da época mesmo que ele foi escrito. E a outra possibilidade é traduzir deslocando o autor temporalmente, e fazendo a linguagem do texto conversar com a linguagem contemporânea. Lidia: Pode parecer um pouco confuso de início, mas ouve só o exemplo do Guilherme da experiência de tradução que ele teve com o Rimbaud, que é um autor francês. Guilherme Gontijo: Por exemplo, fui traduzir Rimbaud, o Rimbaud do século XIX. Quando eu vou traduzir, eu posso tentar traduzir pensando diacronicamente e aí eu vou tentar traduzir o Rimbaud pra ele parecer um poeta do século XIX em português. E aí eu vou dar essa sensação de espaço temporal pro leitor contemporâneo agora. É, o Guilherme de Almeida fez um experimento genial assim, traduzindo o poeta francês François Villon para uma espécie de pastiche de galego-português, botando a linha temporal de modo que é isso, Villon é difícil para um francês ler hoje, que a língua francesa já sofreu tanta alteração que muitas vezes eles leem numa espécie de edição bilíngue, francês antigo, francês moderno. A gente também tem um pouco essa dificuldade com o galego-português, que é a língua literária da Península ali pra gente, né? Ah, então essa é uma abordagem. Outra abordagem, eu acho que a gente faz com muito menos frequência, é tentar deslocar a relação da temporalidade, ou seja, traduzir Rimbaud, não para produzir um equivalente do Rimbaud, século XIX no Brasil, mas pra talvez criar o efeito que ele poderia criar nos seus contemporâneos imediatos. Lívia: Ou seja, a ideia aqui seria escrever um texto da maneira como se escreve hoje em dia, meio que transpondo a história no tempo. Lidia: Pra quem não conhece, fica aqui mais uma dica de leitura: o poeta francês Arthur Rimbaud, que o Guilherme citou, viveu entre 1854 e 1891 e escreveu quase toda sua obra ainda adolescente. Ele renovou a poesia moderna com imagens ousadas, experimentação formal e uma vida marcada pela rebeldia. Abandonou a literatura muito jovem e passou o resto da vida viajando e trabalhando na África. Lívia: Mas, e pra traduzir da língua antiga, será que esse dois caminhos também são possíveis? Guilherme Gontijo: Quando eu vou traduzir do latim, por exemplo, eu não tenho esse equivalente. Não existe o português equivalente de Propércio. O português equivalente de Propércio como língua literária é o próprio latim. Lívia: Ou seja, o que o Guilherme quis dizer é que não existe uma possibilidade de traduzir um texto latino como ele soava na antiguidade, porque o latim é a língua que originou as línguas modernas latinas, e a língua portuguesa é uma delas, junto com o espanhol, o francês e o italiano. Lidia: Mas, o que pode acontecer é uma classicização dos textos antigos e o Guilherme enfatizou que acontece muito nas traduções que a gente tem disponível do latim pro português. A classicização, nesses casos, é traduzir os textos da antiguidade com o português do século XVIII ou XIX, transformando esses textos em clássicos também pra nós. Guilherme Gontijo:Curiosamente, a gente, quando estuda os clássicos, a gente sempre fala: “Não, mas isso é moderno demais. Será que ele falaria assim?” Acho curioso, quando, na verdade, a gente vendo que os clássicos tão falando sobre literatura, eles parecem não ter esses pudores. Aliás, eles são bem menos arqueológicos ou museológicos do que nós. Eles derrubavam um templo e botavam outro templo em cima sem pensar duas vezes enquanto nós temos muito mais pudores. Então, a minha abordagem atual de traduzir os clássicos é muito tentar usar as possibilidades do português brasileiro, isso é muito marcado pra mim, uma das variedades do português brasileiro, que é a minha, né? De modo ativo. Lívia: Só pra dar um exemplo do que faz a língua soar clássica, seria o uso do pronome “tu” ao invés de “você”, ou, os pronomes oblíquos como “eu te disse” ou “eu te amo”, porque ninguém fala “eu lhe amo” no dia a dia. Lidia: E esse é justamente o ponto quando a gente fala de tradução do texto antigo. Eles não vão ter um equivalente, e a gente não tem como traduzir por algo da mesma época. Guilherme Gontijo: Então, a gente precisa fazer um exercício especulativo, experimental, pra imaginar os possíveis efeitos daqueles textos no seu mundo de partida, né? A gente nunca vai saber o sabor exato de um texto grego ou romano, porque por mais que a gente tenha dicionário e gramática, a gente não tem o afeto, aquele afeto minucioso da língua que a gente tem na nossa. Lívia: Essas questões de escolhas de tradução, que podem aproximar ou afastar a língua da qual vai se traduzir pra língua que será traduzida se aproximam das questões sociais e políticas que são intrínsecas à linguagem. [música de transição] Lidia: Assim como qualquer outro texto, os escritos em latim ou grego nunca serão neutros. Mesmo fazendo parte de um mundo tão distante da gente, eles reproduzem projetos políticos e identitários tanto da antiguidade quanto dos atuais. Andrea Kouklanakis: Eu acho que esse aspecto político e histórico dos estudos clássicos é interessante porque é uma coisa quando você tá fazendo faculdade, quando eu fiz pelo menos, a gente não tinha muita ideia, né? Você tava completamente sempre perdida no nível microscópico da gramática, né? De tentar a tradução, essas coisas, você tá só, completamente submersa nos seus livros, no seu trabalho de aula em aula, tentando sobreviver ao Cícero. Lívia: Como a Andrea explicou, os estudos que chamamos de filológicos, soam como uma ciência objetiva. Eles tentam achar a gênese de um texto correto, como uma origem e acabam transformando os estudos clássicos em um modelo de programa de império ou de colonização. Andrea Kouklanakis: Então, por exemplo, agora quando eu dou aula sobre o legado dos estudos clássicos na América Latina Agora eu sei disso, então com os meus alunos a gente lê vários textos primários, né, e secundários, que envolvem discurso de construção de nação, de construção de império, de construção do outro, que são tecidos com os discursos clássicos, né, que é essa constante volta a Atenas, a Roma, é, o prestígio dos estudos clássicos, né? Então, a minha pesquisa se desenvolveu nesse sentido de como que esses latino afro brasileiros, esses escritores de várias áreas, como que eles lidaram na evolução intelectual deles, na história intelectual deles, como que eles lidaram com um ramo de conhecimento que é o centro do prestígio. Eles mesmo incorporando a falta de prestígio completa. O próprio corpo deles significa ausência total de prestígio e como que eles então interagem com uma área que é o centro do prestígio, sabe? Lidia: Então, como você percebeu, a Andrea investiga como os escritores afro-latino-americanos negociaram essa tradição clássica, símbolo máximo de prestígio, com suas histórias incorporadas a um lugar sem prestígio, marcadas em seus corpos pelo tom de pele. Lívia: Esse exercício que a professora Andrea tem feito com seus alunos na Hunter College tem sido uma prática cada vez mais presente nos Estudos Clássicos da América Latina e aqui no Brasil. É um exercício de colocar um olhar crítico pro mundo antigo e não apenas como uma forma de simplesmente celebrar uma antiguidade hierarquicamente superior a nós e a nossa história. Lidia: Nesse ponto, é importante a gente pontuar que a professora Andrea fala de um lugar muito particular, porque ela é uma mulher negra, brasileira, atuando em uma universidade nos Estados Unidos e em uma área de estudos historicamente tradicional. Lívia: Ela relatou pra gente um pouco da sua experiência como uma das primeiras mulheres negras a se doutorar em Estudos Clássicos em Harvard. Andrea Kouklanakis: Eu também não queria deixar de dizer que, politicamente, o meu entendimento como classista foi mais ou menos imposto de fora pra mim, sobre mim como uma mulher de cor nos estudos clássicos, porque eu estava exatamente na década de final de 90, meio final de 90, quando eu comecei a fazer os estudos clássicos na Harvard e foi coincidentemente ali quando também saiu, acho que o segundo ou terceiro volume do Black Athena, do Bernal. E, infelizmente, então, coincidiu com eu estar lá, né? Fazendo o meu doutorado nessa época. E na época existiam esses chat rooms, você podia entrar no computador e é uma coisa estranha, as pessoas interagiam ali, né? O nível de antipatia e posso até dizer ódio mesmo que muitas pessoas expressavam pela ideia de que poderia existir uma conexão entre a Grécia e a África, sabe? A mera ideia. Era uma coisa tão forte sabe, eu não tinha a experiência ou a preparação psicológica de receber esse tipo de resposta que era com tantos ânimos, sabe? Lidia: Com esse relato, a professora Andrea revelou pra gente como o preconceito com a população negra é tão explícita nos Estados Unidos e como ela, mesmo tendo passado a infância e a adolescência no Brasil, sentiu mais os impactos disso por lá. Lívia: Mas, fora o preconceito racial, historicamente construído pelas nossas raízes de colonização e escravização da população negra, como estudiosa de Estudos Clássicos, foi nessa época que a Andrea percebeu que existia esse tipo de discussão e que ainda não estava sendo apresentada pra ela na faculdade. Andrea Kouklanakis: Depois que eu me formei, eu entrei em contato com a mulher que era diretora de admissão de alunos e ela confirmou pra mim que é eu acho que eu sou a primeira pessoa de cor a ter um doutorado da Harvard nos Estudos Clássicos. E eu acho que mesmo que eu não seja a primeira pessoa de cor fazendo doutorado lá, provavelmente eu sou a primeira mulher de cor. Lidia: Vamos destacar agora, alguns pontos significativos do relato da professora Andrea. [som de ícone] Lívia: O livro que ela citou é o Black Athena, do estudioso de história política Martin Bernal. A teoria criada pelo autor afirmava que a civilização clássica grega na realidade se originou de culturas da região do Crescente Fértil, Egito, Fenícia e Mesopotâmia, ao invés de ter surgido de forma completamente independente, como tradicionalmente é colocado pelos historiadores germânicos. [som de ícone] Lívia: Ao propor uma hipótese alternativa sobre as origens da Grécia antiga e da civilização clássica, o livro fomentou discussões relevantes nos estudos da área, gerando controvérsias científicas, ideológicas e raciais. [som de ícone] Lidia: Em contrapartida às concepções racistas vinda de pesquisadores, historiadores e classicistas conservadores, a professora Andrea citou também um aluno negro de Harvard, o historiador e classicista Frank Snowden Jr.. [som de ícone] Lívia: Entre seus diversos estudos sobre a relação de brancos e negros na antiguidade, está o livro Before Color Prejudice: The Ancient View of Black, em português, Antes do Preconceito Racial: A Visão Antiga dos Negros. Um aprofundamento de suas investigações sobre as relações entre africanos e as civilizações clássicas de Roma e da Grécia e demonstra que os antigos não discriminavam os negros por causa de sua cor. [som de ícone] Lidia: O livro lança luz pra um debate importantíssimo, que é a diferença de atitudes dos brancos em relação aos negros nas sociedades antigas e modernas, além de observar que muitas das representações artísticas desses povos se assemelham aos afro-americanos da atualidade. Andrea Kouklanakis: Mas, então é isso, então essa coisa política é uma coisa que foi imposta, mas a imposição foi até legal porque aí me levou a conhecer e descobrir e pesquisar essa área inteira, que agora é uma coisa que eu me dedico muito, que é olhar qual que é a implicação dos estudos clássicos na política, na raça, na história e continuando dando as minhas aulas e traduzindo, fazendo tradução, eu adoro tradução, então, esse aspecto do estudo clássico, eu sempre gostei. [música de transição] Lívia: O Guilherme também falou pra gente sobre essa questão política e histórica dos Estudos Clássicos, de que ficar olhando pro passado como objeto desvinculado, nos impede de poder articular essas discussões com a política do presente. Guilherme Gontijo: E acho que o resultado quando a gente faz isso é muitas vezes colocar os clássicos como defensores do status quo, que é o que o um certo império brasileiro fez no período de Dom Pedro, é o que Mussolini fez também. Quer dizer, vira propaganda de estado. Lidia: Mas, ao contrário, quando a gente usa os clássicos pra pensar as angústias do presente, a gente percebe que é uma área de estudos que pode ser super relevante e super viva pra qualquer conversa do presente. Lívia: E, na tradução e na recepção desses textos antigos, como será que essas questões aparecem? O Guilherme deu um exemplo pra gente, de uma tradução que ele fez do poeta romano Horácio. [som de ícone] Lidia: Horácio foi um poeta romano do século I a.C., famoso por escrever poesias nos formatos de Odes, Sátiras e Epístolas, e defendia a ideia do “justo meio” — evitar excessos e buscar a medida certa na vida. Guilherme Gontijo: Tô lembrando aqui de uma ode de Horácio, acho que esse exemplo vai ser bom. Em que ele termina o poema oferecendo um vai matar um cabrito pra uma fonte, vai oferendar um cabrito para uma fonte. E quando eu tava traduzindo, vários comentadores lembravam de como essa imagem chocou violentamente o século XIX na recepção. Os comentadores sempre assim: “Como assim, Horácio, um homem tão refinado vai fazer um ato tão brutal, tão irracional?” Quer dizer, isso diz muito mais sobre a recepção do XIX e do começo do XX, do que sobre Horácio. Porque, assim, é óbvio que Horácio sacrificaria um cabrito para uma fonte. E nisso, ele não está escapando em nada do resto da sua cultura. Agora, é curioso como, por exemplo, o nosso modelo estatal coloca a área de clássicas no centro, por exemplo, dos cursos de Letras, mas acha que práticas do Candomblé, que são análogas, por exemplo, você pode oferecer animais para divindades ou mesmo para águas, seriam práticas não não não racionais ou não razoáveis ou sujas ou qualquer coisa do tipo, como quiserem. Né? Então, eu acho que a gente pode e esse é o nosso lugar, talvez seja nossa missão mesmo. Lívia: Como o Guilherme explicou, nós no Brasil e na América Latina temos influência do Atlântico Negro, das línguas bantas, do candomblé, da umbanda e temos um aporte, tanto teórico quanto afetivo, pra pensar os clássicos, a partir dessas tradições tão próximas, que a própria tradição europeia tem que fazer um esforço gigantesco pra chegar perto, enquanto pra gente é natural. Lidia: E não podemos nos esquecer também da nossa convivência com várias etnias indígenas, que possuem comparações muito fortes entre essas culturas. Guilherme Gontijo: Eu diria, eu entendo muito melhor o sentido de um hino arcaico, grego, ouvindo uma cantiga de terreiro no Brasil, do que só comparando com literatura. Eu acho que é relevante para a área de clássicas, não é uma mera curiosidade, sabe? Então, eu tenho cada vez mais lido gregos e romanos à luz da antropologia moderna, contemporaneíssima, sabe? Eu acho que muitos frutos aparecem de modo mais exemplar ou mais óbvio quando a gente faz essa comparação, porque a gente aí tira de fato os clássicos do lugar de clássicos que lhes é dado. [música de transição] Lívia: Pra além dessas discussões teóricas e políticas, a tradução é também um ato estético e existem algumas formas de repensar a presença da poesia antiga no mundo contemporâneo a partir de uma estética aplicada na linguagem e nos modos de traduzir. Lidia: No caso do Guilherme, ele vem trabalhando há um tempo com a tradução como performance. Guilherme Gontijo: E aí eu pensei: “Não, eu poderia traduzir Horácio para cantar”. Eu vou aprender a cantar esses metros antigos e vou cantar a tradução na mesmíssima melodia. Quer dizer, ao invés de eu pensar em metro no sentido do papel, eu vou pensar em metro no sentido de uma vocalidade. E foi isso que eu fiz. Foi o meu o meu doutorado, isso acabou rendendo a tradução de Safo. Lívia: Além das traduções publicadas em livros e artigos, o Guilherme também coloca essas performances na rua com o grupo Pecora Loca, que desde 2015 se propõe a fazer performances de poemas antigos, medievais e, às vezes, modernos, como um modo de ação poética. Lidia: Inclusive a trilha sonora que você ouviu ali no início deste trecho é uma das performances realizada pelo grupo, nesse caso do poema da Ode 34 de Horácio, com tradução do próprio Guilherme e música de Guilherme Bernardes, que o grupo gentilmente nos passou. Guilherme Gontijo: Isso pra mim foi um aprendizado teórico também muito grande, porque você percebe que um poema vocal, ele demanda pra valorizar a sua ou valorar a sua qualidade, também a performance. Quer dizer, o poema não é só um texto no papel, mas ele depende de quem canta, como canta, qual instrumento canta. Lívia: O Guilherme explicou que no início eles usavam instrumentos antigos como tímpano, címbalo, lira e até uma espécie de aulos. Mas, como, na verdade, não temos informações precisas sobre como era a musicalidade antiga, eles resolveram afirmar o anacronismo e a forma síncrona de poesia e performance, e, atualmente, incorporaram instrumentos modernos ao grupo como a guitarra elétrica, o baixo elétrico, o teclado e a bateria. Guilherme Gontijo: Então, a gente tem feito isso e eu acho que tem um gesto político, porque é muito curioso que a gente vai tocar num bar e às vezes tem alguém desavisado e gosta de Anacreonte. Olha, caramba, adorei Anacreonte. É, é, e ela percebe que Anacreonte, ela ouviu a letra e a letra é basicamente: “Traga um vinho para mim que eu quero encher a cara”. Então ela percebe que poesia antiga não é algo elevado, para poucos eleitos capazes de depreender a profundidade do saber grego. Ó, Anacreonte é poema de farra. Lidia: A partir da performance as pessoas se sentem autorizadas a tomar posse dessa herança cultural e a se relacionar com ela. O que cria uma forma de divulgar e difundir os Estudos Clássicos a partir de uma relação íntima, que é a linguagem musical. Guilherme Gontijo: E a experiência mais forte que eu tive nisso, ela é do passado e foi com o Guilherme Bernardes. Lembro que dei uma aula e mostrei a melodia do Carpe Diem, do Horácio. Da Ode. E tava lá mostrando o poema, sendo bem técnico ali, como é que explica o metro, como é que põe uma melodia, etc, etc. E uns três dias depois ele me mandou uma gravação que ele fez no Garage Band, totalmente sintética. De uma versão só instrumental, quer dizer, o que ele mais curtiu foi a melodia. E a gente às vezes esquece disso, quer dizer, um aspecto da poesia arcaica ou da poesia oral antiga romana é que alguém poderia adorar a melodia e nem prestar tanta atenção na letra. E que continuariam dizendo: “É um grande poeta”. Eu senti uma glória quando eu pensei: “Caraca, um asclepiadeu maior tocou uma pessoa como melodia”. A pessoa nem se preocupou tanto que é o poema do Carpe Diem, mas a melodia do asclepiadeu maior. [som de ícone] Lívia: Só por curiosidade, “asclepiadeu maior” é um tipo de verso poético greco-latino composto por um espondeu, dois coriambos e um iambo. Você não precisa saber como funcionam esses versos na teoria. Essa forma poética foi criada pelo poeta lírico grego Asclepíades de Samos, que viveu no século III a.C., por isso o nome, o mais importante é que foi o verso utilizado por Horácio em muitas de suas odes. [música de transição] Lidia: Agora, já encaminhando para o final do nosso episódio, não podemos ir embora sem falar sobre o trabalho de recepção e tradução realizado pela professora Andrea, lá na Hunter College, nos EUA. Lívia: Além do seu projeto sobre a presença dos clássicos nas obras de escritores afro-latino-americanos, com foco especial no Brasil, de autores como Lima Barreto, Luís Gama, Juliano Moreira e Auta de Sousa. A professora também publicou o livro Reis Imperfeitos: Pretendentes na Odisseia, Poética da Culpa e Sátira Irlandesa, pela Harvard University Press, em 2023, e as suas pesquisas abarcam a poesia homérica, a poética comparada e as teorias da tradução. Lidia: A professora Andrea faz um exercício muito importante de tradução de autores negros brasileiros pro inglês, não somente das obras literárias, mas também de seus pensamentos teóricos, pra que esses pensamentos sejam conhecidos fora do Brasil e alcance um público maior. Lívia: E é muito interessante como a relação com os estudos da tradução pra professora Andrea também tocam em um lugar muito íntimo e pessoal, assim como foi pro Guilherme nas suas traduções em performances. Lidia: E ela contou pra gente um pouco dessa história. Andrea Kouklanakis: Antes de falar da língua, é eu vou falar que, quando eu vejo a biografia deles, especialmente quando eu passei bastante tempo com o Luiz Gama. O que eu achei incrível é o nível de familiaridade de entendimento que eu tive da vida corriqueira deles. Por exemplo, Cruz e Souza, né? A família dele morava no fundo lá da casa, né? Esse tipo de coisa assim. O Luiz Gama também quando ele fala do aluno lá que estava na casa quando ele foi escravizado por um tempo, quando ele era criança, o cara que escravizou ele tinha basicamente uma pensão pra estudantes, que estavam fazendo advocacia, essas coisas, então na casa tinham residentes e um deles ensinou ele a ler, a escrever. O que eu achei interessantíssimo é que eu estou há 100 anos separada desse povo, mas a dinâmica social foi completamente familiar pra mim, né? A minha mãe, como eu te falei, ela sempre foi empregada doméstica, ela já se aposentou há muito tempo, mas a vida dela toda inteira ela trabalhou como empregada doméstica. E pra mim foi muito interessante ver como que as coisas não tinham mudado muito entre a infância de alguém como Cruz e Souza e a minha infância, né? Obviamente ninguém me adotou, nada disso, mas eu passei muito tempo dentro da casa de família. que era gente que tinha muito interesse em ajudar a gente, em dar, como se diz, a scholarship, né? O lugar que a minha mãe trabalhou mais tempo assim, continuamente por 10 anos, foi, aliás, na casa do ex-reitor da USP, na década de 70 e 80, o Dr. Orlando Marques de Paiva. Lívia: Ao contar essa história tão íntima, a Andrea explicou como ela tenta passar essa coincidência de vivências, separada por cem anos ou mais no tempo, mas que, apesar de todo avanço na luta contra desigualdades raciais, ainda hoje refletem na sua memória e ainda são muito estáticas. Lidia: Essa memória reflete na linguagem, porque, como ela explicou, esses autores utilizam muitas palavras que a gente não usa mais, porque são palavras lá do século XVIII e XIX, mas o contexto chega pra ela de uma forma muito íntima e ainda viva, por ela ter vivenciado essas questões. Andrea Kouklanakis: Eu não sou poeta, mas eu tô dando uma de poeta, sabe? E quando eu percebo que tem algum estilo assim, a Auta de vez em quando tem um certo estilo assim, ambrósia, não sei do quê, sabe? Eu sei que ela está querendo dizer perfume, não sei o quê, eu não vou mudar, especialmente palavras, porque eu também estou vindo da minha perspectiva é de quem sabe grego e latim, eu também estou interessada em palavras que são em português, mas são gregas. Então, eu preservo, sabe? Lívia: Então, pra Andrea, no seu trabalho tradutório ela procura mesclar essas duas questões, a sua relação íntima com os textos e também a sua formação como classicista, que pensa a etimologia das palavras e convive com essa multiplicidade de línguas e culturas, caminhando entre o grego, o latim, o inglês e o português. [música de transição] [bg] Lidia: Ao ouvir nossos convidados de hoje, a Andrea Koclanakis e o Guilherme Gontijo Flores, percebemos que traduzir textos clássicos é muito mais do que passar palavras de uma língua pra outra. É atravessar disputas políticas, revisitar o passado com olhos do presente, reconstruir memórias coloniais e imaginar novos modos de convivência com as tradições antigas. Lívia: A tradução é pesquisa, criação, crítica e também pode ser transformação. Agradecemos aos entrevistados e a você que nos acompanhou até aqui! [música de transição] [créditos] Livia: O roteiro desse episódio foi escrito por mim, Lívia Mendes, que também fiz a locução junto com a Lidia Torres. Lidia: A revisão foi feita por mim, Lidia Torres e pela Mayra Trinca. Lidia: Esse episódio faz parte do trabalho de divulgação científica que a Lívia Mendes desenvolve no Centro de Estudos Clássicos e Centro de Teoria da Filologia, vinculados ao Instituto de Estudos da Linguagem e ao Instituto de Estudos Avançados da Unicamp, financiado pelo projeto Mídia Ciência da FAPESP, a quem agradecemos pelo financiamento. Lívia: Os trabalhos técnicos são de Daniel Rangel. A trilha sonora é de Kevin MacLeod e também gentilmente cedida pelo grupo Pecora Loca. A vinheta do Oxigênio foi produzida pelo Elias Mendez. Lidia: O Oxigênio conta com apoio da Secretaria Executiva de Comunicação da Unicamp. Você encontra a gente no site oxigenio.comciencia.br, no Instagram e no Facebook, basta procurar por Oxigênio Podcast. Lívia: Pra quem chegou até aqui, tomara que você tenha curtido passear pelo mundo da antiguidade greco-romana e entender um pouco de como os textos antigos chegam até nós pela recepção e tradução. Você pode deixar um comentário, na sua plataforma de áudio favorita, contando o que achou. A gente vai adorar te ver por lá! Até mais e nos encontramos no próximo episódio. [vinheta final]
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  • #205 – A disputa pela governança da Internet no Brasil
    A governança da internet, da maneira como é feita hoje, envolve diversos setores e promove um modelo focado na distribuição e acesso por todo o país. Mas mudanças e propostas recentes podem mudar esse cenário, concentrando a gestão da internet em poucas grandes empresas. Neste episódio, apresentado por Damny Laya e Thais Lassali, produzido também por Mayra Trinca, te contamos o que está por trás da queda da Norma 4 da Anatel, que separa o que é telecomunicações do serviço de internet no Brasil. Para isso, falamos com representantes de associações de provedores de internet, membros do Comitê Gestor da Internet no Brasil e da Agência Nacional de Telecomunicações, a Anatel.  _____________________________ ROTEIRO [música de introdução] – Chicken Steak THAIS: Hoje a gente vai falar sobre internet. Mas não sobre o vício que as redes sociais causam ou sobre como conteúdos cada vez mais extremistas e violentos têm vindo à tona. DAMNY: O que não significa que o assunto seja menos importante… ou menos espinhoso. THAIS: A gente vai falar sobre como o acesso de algumas pessoas a internet pode ser abalado com algumas mudanças que estão por vir. Mas, talvez até mais importante, o episódio de hoje é sobre quem toma as decisões sobre o funcionamento da internet no Brasil. DAMNY: Eu sou Damny Laya, bolsista Mídia Ciencia do Nucleo de desenvolvimento da Criatividade que abriga o Labjor. THAIS: E eu sou Thalis Lassali, bolsista Mídia Ciência do Geict, o grupo de estudos interdisciplinares em ciência e tecnologia do Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Unicamp. [VINHETA] DAMNY: Pra começar essa conversa, é importante ter em mente algumas questões técnicas. A gente vai tentar ser breve e didático aqui, mas presta atenção porque vai ser importante. THAIS: A internet funciona dependendo basicamente de três coisas: a camada de infraestrutura básica, as conexões entre diferentes pontos e os conteúdos transmitidos por essas conexões. [música] – Slider DAMNY: A infraestrutura são os cabos e os sistemas de armazenamento de informação, como os cabos submarinos e os data centers, por exemplo. A conexão entre os pontos é a parte lógica do funcionamento, que envolve a identificação na rede e as maneiras de ligar os IPs, os endereços de rede, entre si. THAIS: E a parte de conteúdo é a cobertura de tudo isso, a parte que a gente realmente vê e interage. E, vamos ser sinceros aqui, a parte que mais recebe nossa atenção. Eu não sei você, mas eu mal penso em todo o quebra-cabeça necessário que permite que eu consiga me conectar a rede pra ouvir um episódio de podcast, por exemplo. DAMNY: Só que as camadas de baixo são essenciais pra esse funcionamento. A gente não conseguiria fazer esse podcast chegar até você se não fosse a conexão que existe pra distribuir o episódio nos agregadores e fazer ele chegar no seu fone. THAIS: E não adianta a gente tentar distribuir esse episódio se não tem cabo que leve as informações de um lugar para o outro. Nas grandes cidades, quem costuma fazer o trabalho de instalação desses cabos são as empresas de telecomunicação. DAMNY: Essas empresas são aquelas que nasceram com a telefonia, ganharam corpo com a rede celular e aí foram se adaptando e incluindo no seu serviço a oferta de internet. [encerra música] BASILIO: E existe uma diferença muito importante, que é assim, nas cidades mais grandes, cidades de mais de 500 mil habitantes, quase todas elas são dominadas pelas grandes operadoras, 80% dos acessos são feitos pela Vivo, pela Claro, pela TIM, por empresas desse porte. THAIS: Esse é o Basílio Perez. Ele é vice-presidente da Abrint, a Associação Brasileira de Provedores de Internet e Telecomunicações e presidente da Federação de Associações e Câmaras de Provedores de Internet da América Latina e do Caribe. BASILIO: Mas, quando você vai descendo em cidades menores, em cidades abaixo, já na faixa de 200 mil habitantes, já está meio a meio, metade pequenos provedores, metade grandes operadores. Quando você vai descendo em cidades menores, chegando em cidades de 30 mil habitantes, 90% do acesso é da pequena operadora. DAMNY: O que o Basílio tá dizendo é que a internet do Brasil é organizada de diferentes formas dependendo da região. Nas cidades maiores – em geral mais ricas e com mais infraestrutura – quem predomina são as grandes operadoras. RAFAEL: E muitas vezes elas não têm interesse de levar esse cabo até a cidade do interior. Mas tem um cara que quer prover internet lá. Então ele fala, ei, manda um cabo aqui, eu pago, que depois eu faço o cabeamento aqui da região. Chega o cabo da telecom, ele compra essa conexão, ele compra uns IPs. E monta um negócio vendendo essa conexão. THAIS: Esse agora é o Rafael Evangelista, ele é pesquisador aqui no Labjor e conselheiro do Comitê Gestor da Internet no Brasil, o CGI, representando o setor técnico-científico. DAMNY: CGI. Guarda esse nome que a gente ainda vai voltar nele. RAFAEL: Mas você tem um certo arranjo que permitiu pequenos empresários desempenharem um papel, de fato, empreendedor. Porque ele é, de fato, de risco. Ele vai lá e compra, ele banca que ele vai ter um público consumidor, ele conhece o público consumidor como ninguém. São os caras que têm 40, 50 clientes. Levando, fazendo essa intermediária. E ajudando uma capilaridade da internet, que se dependesse da Claro, da Vivo, da Tim ou da Oi, não ia ter rolado. DAMNY: Tá, você pode estar se perguntando porque isso é importante. THAIS: É que esse cenário pode estar mudando. A Anatel, que é a Agência Nacional de Telecomunicações, derrubou uma norma, a Norma 4. DAMNY: Ela basicamente separava o oferecimento de serviços de telefonia do oferecimento da internet. Uma das diferenças estabelecidas pela norma é a distribuição de impostos, que muda um pouco de um serviço pra outro. THAIS: O imposto de telefonia é um pouco maior do que o imposto sobre a internet. A queda dessa norma e a reforma tributária que foi aprovada vão mudar isso e, assim que entrarem em vigor – o que deve acontecer entre 2027 e 2030 – passa a ser tudo a mesma coisa. DAMNY: Ok, mas qual o problema disso? É que, como a gente começou falando aqui, as empresas menores, que atuam em cidades pequenas, com menos clientes e com pacotes mais baratos, e que no geral oferecem só o serviço de internet, tem uma margem de lucro bem menor do que as grandes empresas. THAIS: Na pandemia, com uma galera trabalhando mais em casa, a procura por pacotes de internet domiciliares até que cresceu bastante, coisa de 50% a mais! DAMNY: Mas a pandemia acabou e o mercado esfriou. [começa música] – Roadside Bunkhouse PARAJO: aí veio o grande problema, aí começou uma briga de preços. A competição estava muito acirrada, aí virou rouba-monte. Baixo o preço aqui, pego uma área com um cliente, eu baixo mais o meu preço aqui, eu tomo ela de volta. E aí começou a ter uma baita confusão no mercado. [encerra música] DAMNY: Você ouviu o Eduardo Parajo, que é coordenador do Comitê de provedores de Internet da Abranet, a Associação Brasileira de Internet. PARAJO: Mas é o seguinte, primeiro, não dá para a gente dizer que tudo é a mesma coisa, porque não é, de fato não é. THAIS: O Eduardo tava se referindo a diferença entre Telecomunicação e Internet, que a gente começou a explicar antes. É importante a gente entender como cada coisa funciona pra conseguir pegar as consequências sutis mas muito relevantes da queda da tal da norma 4 da Anatel. DAMNY: Pra entender melhor, vale a gente te contar um pouco sobre como ela surgiu. MOZART: A Norma 4 foi editada em 1995. No momento que nem a Anatel tinha sido criada ainda. A Lei Geral de Telecomunicações, que abriu espaço para a privatização do sistema Telebrás, das empresas de telecomunicações do Brasil, é de 1997. E essa lei também criou a Anatel em 1997. Então, o Ministério das Comunicações, na época, publicou a Norma 4 e definiu algumas diretrizes básicas e iniciais de uma internet que estava só começando, estava nascendo no Brasil, e deu algumas garantias que eram importantes na época. DAMNY: Esse é o Mozart Tenorio, assessor da presidência da Anatel e membro suplente no CGI, na vaga destinada à Anatel. Ele vai seguir contando pra gente sobre a história da internet no Brasil e a importância da Norma 4. MOZART: Dois anos e meio depois, em 1997, a Lei Geral de Telecomunicações chegou, ela recepcionou a Norma 4. Basicamente, o que tem escrito na Norma 4 está repetido no artigo 61 da Lei Geral de Telecomunicações, que são as salvaguardas, as garantias de separação entre o que é internet e o que é telecomunicações no sentido jurídico brasileiro. THAIS: O Mozart tá chamando atenção para o fato de que, no Brasil, telecomunicações e internet são serviços diferentes não apenas do ponto de vista dos impostos. Na prática, as duas se desenvolveram de maneira separada. Quando você está usando a telecomunicação, o que está acontecendo por trás do seu mecanismo de acesso é sempre um acesso de ponto a ponto. DAMNY: Suponha que você queira conversar com um parente que está na mesma cidade que você, você liga para ele e as linhas telefônicas realizam uma conexão entre o seu telefone e o do seu parente. Agora suponha que você quer falar com um amigo que está em outro país. As linhas telefônicas vão realizar uma outra ligação entre o seu telefone e o do seu amigo. Esse é o funcionamento típico das telecomunicações. Com a internet, a coisa muda de figura. Escuta o Basílio de novo. BASILIO: A internet é uma rede já completamente conectada, o tempo todo conectada. Então, ela precisa das telecomunicações para que o cliente chegue até a internet. Mas, quando chega na internet, os protocolos são outros. THAIS: Com a internet, as coisas ficam um pouco mais complexas. Pensa, por exemplo, nas ligações de grupo que a gente consegue fazer pelo aplicativo de mensagens. Isso não seria possível no modelo clássico de ponto a ponto das telecomunicações. Porque você tem mais de 2 pontos conectados ao mesmo tempo. DAMNY: Isso acontece principalmente naquela camada intermediária do funcionamento da internet. Lembra que a gente falou lá no começo? Embaixo de tudo tem a parte “física”, cabos, instalação e etc. Em cima, dependendo dessa infraestrutura, tem a lógica de conexão desses equipamentos. BASILIO: Ou seja, o serviço de conexão à internet dele começa na hora que ele recebe os clientes na fibra, dali pra frente começa o serviço de conexão à internet dele com as diversas saídas possíveis. Porque, como ele tem várias saídas, ele tem que usar os protocolos para ver “este cliente eu vou mandar por aqui, este outro eu vou mandar por aqui, este aqui pelo serviço que ele está pedindo por aqui é melhor”. Então, isso é a conexão à internet. DAMNY: Nesse modelo, não temos mais uma linha conectando um ponto a outro, mas uma rede de pontos conectados ao mesmo tempo. O Mozart deu outro exemplo disso. MOZART: Por exemplo, os data centers. Os dados vão lá, eles são processados de alguma maneira e voltam, tudo isso, pela rede de telecomunicações. Mas aquele lugar, aquela infraestrutura de data center, ela não é de telecomunicações clássicas, porque ela não vai te conectar. Então, assim, o serviço, as infraestruturas que não te conectam não são de telecomunicações. THAIS: Essa questão da conectividade é importante. MOZART: A Anatel já se debruçou sobre esse problema, já julgou, já deixou bem claro que, quando o serviço não te presta conectividade, ele não é um serviço de telecomunicações. THAIS: Por exemplo, os canais abertos de televisão funcionam no modelo clássico de telecomunicações. O que a operadora de TV faz é me conectar à transmissão do canal que eu escolhi assistir. DAMNY: Agora, os streamings não fazem a mesma coisa. Ao acessar uma plataforma de filmes, eu tenho acesso apenas ao acervo daquela empresa. Ou seja, ela não me conecta com algum outro ponto, ela só me dá acesso aos arquivos de mídia. MOZART: Então, o streaming não é um serviço de telecomunicações, o mesmo raciocínio vale para a internet. THAIS: Então, do ponto de vista técnico, telecomunicações e internet funcionam de maneiras distintas e que podem ser separadas, ainda que elas sejam dependentes entre si. Foi exatamente essa separação que a Norma 4 estabeleceu. RAFAEL: E com essa separação, você passou a ter essa entidade, que é o CGI, como responsável pela distribuição de IPs no Brasil. E pelo registro de nomes de domínio. Então, todo nome de domínio .br é distribuído pelo CGI. E quem organiza todo esse processo é, hoje é o NIC, que é a entidade, é o CNPJ do CGI. DAMNY: Aqui de volta o Rafael, pesquisador do Labjor, explicando o que é o CGI, que a gente falou lá no começo que voltaria pra essa história. RAFAEL: Quando eles fundam o CGI, o CGI vai ser essa entidade multissetorial que vai tomar as decisões técnicas relativas a esse gerenciamento da internet, a internet como raiz, a internet como uma infraestrutura que sustenta a web. DAMNY: Ou seja, existe também uma separação e delimitação da responsabilidade de gestão da internet. Baseado na Norma 4, a Anatel cuida da infraestrutura básica, compartilhada com a rede de telecomunicações. Cabeamento, instalação, etc. THAIS: E o CGI cuida principalmente daquela camada do meio, da distribuição dos domínios, da lógica de funcionamento e conexão a partir dessa infraestrutura. Também fazem pesquisas e elaboram diretrizes sobre a camada de conteúdo, aquela visível e que a gente efetivamente interage no nosso dia a dia. DAMNY: Mas, se a coisa fosse realmente simples assim, a gente não tava aqui te explicando tudo isso. O que acontece é que às vezes pode ser bem difícil separar uma coisa da outra. THAIS: Pensa no caso dos streamings que a gente acabou de falar. Ok, eles não são telecomunicações, porque não me conectam a lugar nenhum. Mas, eles precisam do sistema de cabos que um serviço de telecom instalou na minha casa pra poder funcionar. DAMNY: E o mesmo vale pra Internet, sem a camada de infraestrutura, que é regulada pela Anatel, não tem como pensar a lógica de distribuição e funcionamento, que fica sob o guarda-chuva do CGI. Escuta outro exemplo do Mozart. [começa música] –  Slider MOZART: por exemplo, o cabo submarino. Você não pode assinar um serviço de cabo submarino para levar seus dados aos Estados Unidos, ou à Europa, ou a qualquer lugar do mundo. Mas, a rede de telecomunicações usa esses cabos, porque sem ela, a conectividade que o cliente espera, que o assinante espera, não se realiza. E aí é que entra a parte que eu disse que é muito turvo, porque quase tudo, hoje em dia, é necessário para conectar. E aí, quando a Anatel regula esses equipamentos, homologa e autoriza o uso, a gente entra num terreno que fica muito difícil dizer o que é somente internet e não faz parte da rede de telecomunicações e vice-versa. THAIS: E a coisa vai ficando mais complicada. Porque a situação vai além de só definir limites de regulação. DAMNY:  A questão é que, na prática, a Anatel e o CGI atuam de maneiras diferentes. A Anatel acaba atuando de maneira muito próxima das empresas de telecomunicações, escuta o Rafael aqui de volta. RAFAEL: Porque as empresas têm muita grana. E a Anatel, nos últimos dois, três anos, tem tido um protagonismo enorme, porque eles querem ser a entidade da internet no Brasil. DAMNY: Já o CGI opera numa outra lógica. O Comitê não tem fins lucrativos. O dinheiro arrecadado através dos domínios de internet, por exemplo, é todo reaplicado em cursos, pesquisas, formações. Menos voltado pro mercado, e mais pros usuários da rede. RAFAEL: O CGI pratica preços que não são preços de mercado.Custa 40 reais um domínio, faz, sei lá, 10 anos. O objetivo é vender mais domínios e ter uma internet mais brasileira. [sobe som, pausa de respiro, segue sem bg] THAIS: Ok, até aqui a gente entendeu mais ou menos como a internet funciona no Brasil, e que tá rolando uma certa disputa pra decidir quem vai poder regular o que nesse cenário. DAMNY: Hoje, a Anatel fica responsável pela infraestrutura básica, compartilhada com as telecomunicações. E o CGI fica responsável pela organização da camada de cima, com a operação da internet em si. THAIS: Verdade que já tinham uns atritos entre essas duas entidades, mas a coisa esquentou mais por conta da queda da Norma 4 da Anatel, que fazia uma separação desses tipos de serviços prestados e da cobrança de impostos de cada um deles. DAMNY: Essa coisa dos impostos apareceu com frequência aqui e acho que é importante a gente retomar um pouquinho. A gente perguntou pro Mozart, o representante da Anatel no CGI, sobre essas mudanças todas. MOZART: Agora, para a questão tributária, aí sim, tem um impacto que sempre foi muito debatido no setor. Envolve, de maneira geral, os entes federativos dos estados e dos municípios, porque o serviço de internet é um serviço de valor adicionado, e por ser esse tipo de serviço, ele recolhe ISS, as prefeituras. E o serviço de telecomunicações, ele recolhe ICMS aos estados. Então, essa separação, do ponto de vista tributário, ela era muito relevante para os entes federativos. THAIS: A princípio, a gente achou que essa questão tributária fosse o ponto mais importante aqui. Afinal, mexe com o recolhimento de impostos de prefeituras e estados e também com a capacidade de se manter pequenos negócios, que poderiam sofrer com impostos maiores, como a gente falou antes. DAMNY: Isso porque o mercado de internet tem crescido cada vez mais e tem se tornado também cada vez mais competitivo. Nesse contexto, mudar a configuração tributária pode ser decisivo pra saber quem continua nesse mercado e quem, infelizmente, vai acabar perdendo. Uma coisa são as grandes empresas de telecomunicações e outra, muito diferente, são os pequenos provedores de internet. PARAJO: Você está falando de um cara muito pequeno. E quando você traz um peso regulatório para esse cara, um monte de regras, um monte de coisas que esse negócio tem que fazer, é complicado. Ele não tem escritório de advocacia, ele é a esposa, o filho, sei lá, um primo, um irmão, que é sócio do cara e é uma empresa pequena. Então, a gente sempre trabalhou junto à agência no sentido seguinte, olha, não dá para você pegar uma regra que você pega como uma big empresa de telecom e aplicar essa regra ali. THAIS: Aqui de volta o Eduardo Parajo, ele e o Basílio fazem parte de associações de provedores de Internet no Brasil. Você ouviu bastante dos dois ao longo desse episódio. DAMNY: Eles ajudaram a gente a entender que, no fundo, essa questão tributária é um problema menor do que parece. BASILIO: A norma 4, ela tem vários fatores, que é assim. A Anatel diz que um dos motivos de tirar a norma 4 é que ela é uma questão meramente tributária, mas não é verdade. THAIS: Até porque, com a última reforma tributária aprovada, essa diferença entre os tipos de impostos já vai deixar de existir até 2030. BASÍLIO: Então, é até prematuro querer acabar com a Norma 4 agora, sendo que, por questões tributárias, daqui a mais 3, 4, 5 anos, isso já vai acabar naturalmente, essa separação tributária. Mas o problema da Norma 4 não é meramente tributário, é uma questão de conceito, de separar o que é telecomunicações do que é internet.  São coisas completamente diferentes. PARAJO: E não é isso que estamos falando, estamos falando uma coisa conceitual.A questão tributária vai ser resolvida na reforma, ele está caminhando e vai ter o seu desfecho, dá o que algum tempo. Agora, o conceito do que é a separação dos serviços, do que é o que, não tem absolutamente nada a ver com isso. DAMNY: Outro fator que leva o Eduardo, o Basílio, o Rafael e mesmo a gente a acreditar que tem mais coisa por trás dessa mudança além de impostos, é um projeto de lei que começou a circular no ano passado. [começa música] – Roadside Bunkhouse THAIS: O PL 4.557, de 2024, quer centralizar a regulamentação da internet sob responsabilidade da Anatel, que se tornaria responsável, por exemplo, por registrar e manter os nomes de domínio e as distribuições de IPs pelo Brasil. Hoje, quem faz isso, lembra, é o CGI. DAMNY: A gente quis saber do Mozart qual é a visão da Anatel sobre esse projeto de lei. MOZART: Nosso posicionamento, de maneira geral, é, olha, a gente é uma agência que foi criada em 1997, a gente já está fazendo 28 anos, e agora com esse turbilhão de novidades e de mudanças, a gente se coloca à disposição do Estado brasileiro, do Congresso Nacional, da Presidência da República, do povo brasileiro, para que a gente assuma novas atribuições da maneira que o Congresso achar e a Presidência da República acharem justo. E essa questão de centralizar muito poder, pouco poder, muita atribuição, pouca atribuição em uma ou mais agências, é um debate da mesma maneira que está sendo travado no mundo inteiro, não somente no Brasil. THAIS: Quando a gente fala de centralização desse poder regulatório sobre a internet, a gente tá falando basicamente de duas coisas: de governança e de soberania. [encerra música] DAMNY: Governança, de modo geral, é a forma como as regras, as normas e as ações são pensadas, estruturadas, realizadas, reguladas e responsabilizadas. Pensando especificamente na internet, esse conceito trata das atividades que pensam sobre o desenvolvimento e o uso da internet. THAIS: Falando em termos práticos, estamos falando das atividades realizadas pelo CGI, pelo NIC.BR, pela Anatel, pelo governo brasileiro e pela sociedade civil interessada no planejamento, no desenvolvimento e na execução de princípios e regras que organizam e regulam a internet no Brasil. DAMNY: E pra ter uma boa governança, a gente entende que o ideal é ter a participação efetiva do maior número possível de agentes envolvidos no assunto. E, com a atuação do CGI, o Brasil é uma referência mundial nisso. Escuta o Eduardo aqui. PARAJO: Se hoje nós temos uma internet que é resiliente, que é bastante distribuída, existe uma concentração grande em São Paulo, mas cada vez está sendo mais distribuída, que hoje o conteúdo está mais perto do usuário é graças ao trabalho do Comitê Gestor e do NIC, que tem um trabalho muito forte de educação, de pesquisa. THAIS: E o trabalho do CGI, lembra, segue um modelo que a gente chama de multissetorial. O que significa que o Comitê reúne pessoas de diferentes áreas pra debater internet no Brasil. DAMNY: Tem representantes do mercado, da sociedade civil, das associações de internet e de membros técnicos-científicos, como o Rafael. RAFAEL: Aí a Anatel surge como, nesse projeto de lei, querendo ser ela a grande entidade reguladora e aí pegando o CGI, que tem um caráter multissetorial, e enfiando debaixo dela. E dizendo, vamos fazer multissetorialismo também. Mas, que multissetorialismo é esse que você está debaixo de uma autoridade, uma entidade reguladora? Não é uma condição horizontal. Que liberdade os conselheiros vão ter de fato? Hoje a Anatel não respeita o CGI. [silêncio] [música] – Highway 94 THAIS: Tirar o poder de gestão de um órgão multissetorial e centralizar na agência de telecomunicações pode ter uma série de consequências. O Eduardo Parajo ajudou a gente a visualizar algumas delas. DAMNY: Uma delas é concentrar ainda mais a prestação de serviços em grandes operadoras. O que, como a gente já viu, pode ser um problema pra cidades menores, populações mais afastadas e pequenas empresas provedoras de internet. PARAJO: Eu acho que no momento que você tentar deixar a internet dentro, considerar ela um serviço de telecomunicações, você, de fato, vai ter um problema de médio e longo prazo. Você vai diminuir a concorrência. THAIS: Outra questão importante é que Anatel já tem sua carga de funções. PARAJO: Primeiro que a agência tem um papel fundamental na parte de telecomunicações que ela está esquecendo, que é cuidar das telecomunicações no Brasil. DAMNY: E, segundo o Eduardo, tem uma série de pontos que já são de responsabilidade dela que podem ser melhorados. PARAJO: Outra, tem questões estratégicas que a agência poderia estar trabalhando na parte de telecomunicações para o Brasil. Nós temos, às vezes, muita concentração nas localidades de serviços de telecomunicações e escassez em outras. Podia estar sendo feito um trabalho forte nesse sentido. THAIS: Resumindo, a mudança da Norma 4 envolve uma série de pontos delicados pra governança da internet no Brasil. Ela pode afetar a cobrança de impostos, que tem um peso maior em pequenos provedores. Mas ela também borra as margens do que é internet e do que é telecomunicações, abrindo caminho pra mudanças mais profundas. PARAJO: Mas, além desse custo adicional, vamos dizer assim, eu acho que tem um custo que é o futuro da evolução da internet no Brasil. Eu acho que isso é um ponto que a gente tem que estar com muita atenção. THAIS: Quando o Eduardo Parajo fala sobre o futuro da evolução da internet no nosso país, ele está falando exatamente da governança da internet no Brasil. Como foi possível ouvir, a maior parte dos nossos entrevistados se preocupa com o fato de que colocar telecomunicações e internet debaixo do mesmo guarda-chuva pode ameaçar exatamente a governança da internet brasileira. DAMNY: Sendo tudo telecomunicações, tudo estará sob o gerenciamento da Anatel que, como vimos, acaba atuando muito mais sob a lógica das grandes empresas que dominam o mercado brasileiro. THAIS: De um modo geral, ainda que os argumentos de quem é favorável ao fim da Norma 4 recaiam sobre essas questões tributárias, o cerne da questão parece ser muito mais mercadológico. DAMNY: Mas, o que isso tem a ver com soberania, que a gente falou antes? Soberania é um conceito normalmente utilizado quando se fala sobre estados nacionais, ou seja, países. Nesse contexto, soberania fala sobre a capacidade de um país se auto-governar, de ser capaz de decidir sobre si mesmo, seu presente e seu futuro sem a interferência de outros países ou entes governamentais. THAIS: Pensando os contextos digitais, os debates sobre internet definem também a ideia de soberania digital, que é a capacidade de controlar e dirigir os próprios ativos digitais, ou seja, os dados, os protocolos, os softwares, os hardwares e as infraestruturas do digital e da internet no próprio país. [começa música] – Highway 94 RAFAEL: É um negócio de desenvolvimento econômico, e aí usar a palavra soberania do jeito que você está usando, eu acho legal, porque quando começou esse movimento de soberania digital, a intenção nunca foi falar só de Estado, mas de falar de soberania trazendo essa perspectiva de um controle comunitário sobre essa infraestrutura digital. THAIS: E isso reflete muito também na ideia de popularizar o acesso, entendendo que a possibilidade de cada vez mais brasileiros poderem acessar a internet, em um contexto que ela cada vez mais faz parte do cotidiano, é também um ato de soberania. DAMNY: Quem determina o acesso à internet no Brasil são as políticas de governança, então deixar essas políticas na mão apenas do setor empresarial dificulta uma governança mais democrática e popular que vai na contramão da ideia de soberania digital. [encerra música] DAMNY: Esse episódio foi produzido por Mayra Trinca, Thaís Lassali e por mim, Damny Laya. A revisão é da Lívia Mendes e do Rafael Evangelista. Os trabalhos técnicos são da Carolaine Cabral. THAIS: A trilha sonora é do Blue Dot Sessions e a vinheta do Oxigênio é do Elias Mendez. DAMNY: Este episódio é parte dos trabalhos da bolsa Mídia Ciência, da Fapesp. O Oxigênio conta com apoio da Secretaria Executiva de Comunicação da Unicamp. THAIS: Obrigada por ouvir até aqui, se quiser, deixa seu comentário sobre esse episódio na sua plataforma de áudio preferida ou nas redes sociais. Você encontra a gente em todas as plataformas como Oxigênio Podcast. [VINHETA ENCERRAMENTO]
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  • #204 – A ciência na busca por novos medicamentos
    Você já se perguntou como novos medicamentos são desenvolvidos? Neste episódio, vamos apresentar uma das abordagens científicas para desenvolver novos tratamentos para doenças humanas: a descoberta de fármacos baseada em alvos biológicos. Você vai conhecer como a ciência une o trabalho de diferentes áreas do conhecimento para encontrar moléculas que podem se tornar medicamentos, tanto a partir de experimentos de bancada, nos laboratórios, quanto com o uso de ferramentas computacionais.  Você vai ouvir entrevistas com Katlin Massirer, farmacêutica e pesquisadora que coordena o Centro de Química Medicinal (CQMED) da Unicamp e com Karina Machado, professora na Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e coordenadora do Laboratório de Biologia Computacional (Combi-Lab). Elas vão explicar como é realizado o complexo trabalho que envolve equipes multidisciplinares para identificar e produzir proteínas-alvo em laboratório, testar milhares de moléculas capazes de modular a função dessas proteínas e mostrar como a ciência da computação pode acelerar essas etapas. O episódio foi produzido por Lívia Mendes e Daniel Rangel e faz parte do trabalho de divulgação científica que o Daniel Rangel desenvolve no CQMED da Unicamp financiado pelo projeto Mídia Ciência da FAPESP. ____________________________________________________________________________________________________ ROTEIRO [música – BG] Lívia: Capivasertibe. Você provavelmente nunca ouviu falar nesse nome, mas ele nomeia algo que tem uma importância muito relevante na saúde da nossa população, principalmente na saúde das mulheres. Lidia: Agora, se a gente falar “Outubro Rosa”, você deve associar o nome à campanha de conscientização sobre a importância da prevenção e do diagnóstico precoce do câncer de mama, que aliás está acontecendo no mês que esse podcast tá sendo gravado. Lívia: Isso mesmo. O “Outubro Rosa” é um movimento internacional de conscientização no controle do câncer de mama, criado no início da década de 1990,  com a primeira Corrida pela Cura, em Nova Iorque. No Brasil é realizado desde 2002, e foi instituído por lei federal em 2018. Lidia: Mas, você deve estar se perguntando, qual a relação do Capivasertibe com o Outubro Rosa? Lidia: Então, o capivasertibe é um medicamento usado pra tratar certos tipos de câncer de mama avançado. Ele bloqueia uma proteína chamada AKT, que atua de forma desregulada em células cancerígenas, inibindo o crescimento do tumor, dando assim uma maior expectativa de vida pros pacientes. Lívia: Mas, porque a gente escolheu falar exatamente do tratamento do câncer de mama com capivasertibe nesse episódio? Lidia: Porque hoje a gente vai te contar uma abordagem da ciência pra desenvolver novos medicamentos, e o capivasertibe é um dos exemplos de medicamento disponível nas farmácias desenvolvido a partir dessa abordagem. Lívia: Essa abordagem é a descoberta de novos fármacos baseada em alvos biológicos e já já você vai entender isso.  [música de transição]  Lidia: Todo mundo já precisou de um medicamento em algum momento da vida. Desde um tratamento pra uma dor leve, causada por algum acidente doméstico, ou um para aliviar um mal-estar e até pras doenças mais graves, como os diferentes tipos de cânceres. Lívia: Mas, provavelmente você nunca parou pra pensar como novos medicamentos são descobertos. E é exatamente isso que a gente vai te contar nesse episódio. Lidia: Você vai conhecer como a ciência une o trabalho de diferentes áreas do conhecimento pra encontrar moléculas que podem se tornar fármacos. Tanto a partir de experimentos de bancadas, nos laboratórios, quanto a partir de ferramentas da computação. Lívia: Eu sou a Lívia Mendes e esse é o episódio “A Ciência na Busca por Novos Medicamentos”.  Lidia: Eu sou a Lidia Torres. Vem com a gente embarcar no mundo invisível dos genes, das proteínas e das pequenas moléculas, pra entender como os cientistas desenvolvem os medicamentos que a gente utiliza pra tratar as nossas enfermidades. Lívia: Hoje a gente vai falar das fases iniciais do desenvolvimento de novos fármacos, mais especificamente das estratégias de descoberta baseadas em alvos biológicos. [Vinheta Oxigênio] Lívia: A história da descoberta de novos fármacos nos mostra que a humanidade sempre buscou soluções na natureza. Lidia: Basicamente, existem duas formas de se descobrir um novo medicamento. A primeira delas é essa, mais lógica, que a Lívia falou, a partir de compostos naturais. Sabe aquele chazinho que a sua vó te indicava pra tratar uma indisposição? Então, esse é o costume mais antigo dos seres humanos, usar compostos naturais pra aliviar sintomas que nos incomodam. Lívia: Mas, lembra do capivasertibe? Que a gente te apresentou lá no início do episódio? Ele foi descoberto de outra forma, sua origem não é a partir de produtos naturais, seu princípio ativo é uma molécula sintetizada em laboratório. Lidia: A história do capivasertibe começa com a busca por tratamentos que pudessem atacar o câncer de forma direcionada, agindo nas vias de sinalização celular, que quando desreguladas fazem as células crescerem sem controle. Lívia: Nos anos 2000, cientistas já sabiam que muitas formas de câncer, especialmente o câncer de mama, apresentavam alterações em um caminho biológico chamado PI3K/AKT, uma espécie de “interruptor” que, quando ligado de forma permanente, fazia as células se multiplicarem descontroladamente. Lidia: Então, pesquisadores do Instituto de Pesquisa sobre Câncer da Universidade de Cambridge e das empresas Astex e AstraZeneca investiram esforços para desenvolver uma molécula capaz de bloquear a enzima AKT, que é uma das peças centrais desse caminho. Depois de anos de estudos e testes em laboratório, eles desenvolveram o “capivasertibe”, que é uma molécula, pequena, sintética que inibe seletivamente as três isoformas da proteína AKT. Lívia: Os primeiros ensaios clínicos em humanos começaram por volta de 2013, mostrando que o medicamento era eficaz, principalmente em pacientes com mutações genéticas. Em combinação com terapias hormonais, ele conseguiu reduzir o crescimento tumoral em mulheres com câncer de mama avançado. Lidia: Dez anos depois, em 2023, após resultados positivos de estudos clínicos em um grupo maior de seres humanos, o capivasertibe foi aprovado, em associação com fulvestranto, e se tornou um dos representantes da nova geração de medicamentos desenvolvidos com foco em alvos específicos disponíveis nas farmácias. Lívia: Essa é, então, a outra forma que a gente tem de encontrar moléculas pra tratar doenças, ou seja, sintetizando essas moléculas quimicamente em laboratório pra que se liguem de forma seletiva em proteínas relacionadas a alguma doença. Lidia: É a descoberta de novos fármacos “baseada em alvos”, que a gente falou lá no início. Lívia: Esse método “baseado em alvos” funciona assim: ao invés dos cientistas partirem de uma molécula com efeito conhecido na natureza, e daí, descobrirem em qual alvo do corpo humano ela atua, eles fazem o caminho inverso selecionam um alvo, ou seja, alguma proteína que esteja relacionada com uma doença, como no caso do câncer de mama e o caminho biológico chamado PI3K/AKT, e, a partir daí, buscam moléculas que possam modular a sua atividade. [som de laboratório]  Katlin Massirer: Então, aqui dentro temos biólogos, físicos, engenheiros, farmacêuticos, químicos, essas pessoas atuam conjuntamente em diferentes plataformas. Temos uma plataforma, um local onde fazemos produção de proteína, outro local físico no mesmo espaço onde fazemos as moléculas, outro local computacional e um local que é uma sala de células, onde depois nós verificamos nas células se essas moléculas funcionam. Então aqui é a parte de ensaios, né? Para validar. E tem também a parte onde os cientistas ficam juntos e lá a química sintética. Lívia: Essa é a Katlin Massirer. Ela é farmacêutica e pesquisadora e, nesse áudio que você ouviu, ela tava apresentando pra gente como funciona o laboratório que ela coordena aqui na Unicamp, o Centro de Química Medicinal, CQMED. Katlin Massirer: Neste laboratório, como se nós trabalhássemos como uma mini empresa farmacêutica na descoberta de novas moléculas que levarão a novos medicamentos a longo prazo.  Lidia: Lembra que a gente falou dos medicamentos que são descobertos por meio daquele método “baseado em alvos”. Lívia: Os pesquisadores que trabalham junto com a Katlin, no CQMED, fazem exatamente esse trabalho. Lidia: As pesquisas que são desenvolvidas ali atuam na fase inicial da busca por novas moléculas com potencial terapêutico. No CQMED os cientistas de diferentes áreas do conhecimento trabalham juntos pra identificar os melhores alvos biológicos, produzir esses alvos em laboratório e, daí, iniciar as rodadas em busca de moléculas capazes de interagir com eles e realizar as modificações químicas pra otimizar a ligação entre eles. Lívia: A Katlin explicou pra gente que as etapas dos estudos, desenvolvidos no CQMED, envolvem a escolha de uma proteína humana (ou de algum parasita), que tenha relação com uma doença. Como a gente já tinha visto lá no caso da proteína AKT, no câncer de mama. Daí, os pesquisadores fazem uma clonagem e produzem essa proteína em laboratório, que depois irão ser testadas com milhares de moléculas químicas iniciais, buscando aquelas que se encaixam nessas proteínas. Katlin Massirer: E ao longo desse processo, a proteína precisa ser estudada em conjunto com essa molécula, para que nós possamos fazer etapas que permitam entender se elas poderão atuar em conjunto no ser humano e bloquear alguma doença. Lidia: O laboratório funciona como se fosse uma indústria farmacêutica pequena. Ali os pesquisadores produzem proteínas, que são isoladas, utilizam sistemas de separação e filtragem pra purificar a proteína de interesse e fazem também a cristalografia dessas proteínas com as moléculas ligantes, pra entender a forma como elas interagem. Katlin Massirer: Nós enviamos esses cristais para uma linha de difração de raio X, que fica localizado no grande laboratório, que tem um acelerador de partículas, o CNPEM, aqui ao lado da UNICAMP. [sons de ícones] Lívia: Moléculas ligantes são aquelas que possuem alguma interação com as proteínas alvos. Essas moléculas são chamadas de Hits e passam por modificações químicas pra aumentar a potência de ligação e sua seletividade pela proteína específica que está servindo como alvo, evitando que se liguem em proteínas parecidas e ocorram possíveis efeitos colaterais.  Lidia: O CNPEM, que a Katlin citou, é o Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais, uma instituição científica de fronteira, aberta, multidisciplinar e multiusuário. O CNPEM atua em áreas como nanotecnologia, biociências, biotecnologia, biorrenováveis e instrumentação científica, e oferece estrutura pra comunidade científica, promovendo a pesquisa científica e a inovação. Lívia: O acelerador de partículas do CNPEM, produz luz síncrotron, um tipo de radiação muito intensa produzida quando elétrons são acelerados a velocidades próximas à da luz e desviados por campos magnéticos. Essa luz especial permite investigar a estrutura da matéria em escala nanométrica, auxiliando os cientistas no estudo das estruturas tridimensionais de proteínas e como os candidatos a fármacos se ligam nelas.  Katlin Massirer: E, como próximas etapas, uma vez que a gente tem uma proteína isolada e moléculas que possam se ligar como um encaixe de Lego. Nós temos que mostrar que essas moléculas químicas, que virão a ser novos medicamentos, que elas consigam realmente melhorar ou bloquear uma atividade dessa proteína. Lívia: A Katlin explicou que a gente tem mais de vinte mil tipos de proteínas no nosso corpo e cada uma tem uma função num determinado momento. Quando essas proteínas são produzidas em excesso, estão super ativas ou não estão funcionando corretamente, nós podemos desenvolver doenças, como acontece em alguns tipos de cânceres. Os medicamentos, então, funcionam em nosso corpo como moduladores da função dessas proteínas. Lidia: Outra etapa que também faz parte do processo de pesquisa na criação de novos medicamentos é a etapa computacional. Lívia: Todo esse processo inicial leva em torno de cinco anos pra ser completado, passando por todos esses ciclos que a gente te contou. Ah, e é importante lembrar que todo esse trabalho é feito por uma equipe multidisciplinar, em que atuam diferentes profissionais como biólogos, físicos, engenheiros, farmacêuticos e químicos. Lidia: E a Katlin também contou que essas etapas já envolvem parcerias com algumas indústrias farmacêuticas nacionais. Essa parceria é possibilitada pela Empresa Brasileira de Pesquisa em Inovação Industrial, a Embrapii. Desde 2017 o CQMED tá cadastrado como uma unidade Embrapii de fármacos e biofármacos e pode fazer parcerias com empresas e startups do ramo. Katlin Massirer: Nós queríamos trazer projetos de inovação radical com a indústria farmacêutica brasileira, com esse grande foco de realmente descobrirmos novos medicamentos nacionais, medicamentos que sejam desenvolvidos no Brasil por brasileiros. Lívia: Esse tipo de inovação radical é diferente da inovação incremental, quando já existe um medicamento e as pesquisas servem pra melhorar ou aplicar esse medicamento em outra doença. O que, segundo a Katlin, já é feito bastante aqui no Brasil. Lidia: Agora, com todas essas informações, você já deve estar se perguntando o que precisa ser feito pra que um medicamento chegue no balcão da farmácia, depois de passar por todos esses processos. Katlin Massirer: Então, isso são estudos em várias fases, né? A gente fala de estágio inicial, pré-clínico, fase 1, fase 2 e, depois, esse fármaco iria pro mercado. Lívia: São etapas bem demoradas e rigorosas pro medicamento chegar no mercado e a gente poder utilizar de forma segura nos tratamentos. Lívia: Todo esse processo parece complexo e realmente é. Além de ter um custo alto e precisar de muito tempo de esforços em pesquisa, algumas estimativas sugerem que, da bancada até ser disponibilizado na farmácia, o desenvolvimento de um medicamento pode custar entre 1 e 2 bilhões de dólares e demorar de 10 a 15 anos. Lidia: Então, depois de encontrar uma molécula com propriedades interessantes pra se tornar um novo fármaco, ela precisa ser testada em pequenos animais, depois em pessoas saudáveis e só daí, então, poderão ser administradas, de uma maneira muito controlada, num grupo de pacientes enfermos. Lívia: Tudo isso tem um custo bem elevado. Por isso, quanto mais bem feita for a pesquisa na fase inicial, maior a chance da molécula avançar até ficar disponível pra utilização em tratamentos. Lidia: E, como a gente já te contou, é nessa fase inicial que os pesquisadores do CQMED usam técnicas pra testar se as moléculas mais promissoras são eficientes contra a proteína-alvo e em células cultivadas em laboratório. Lívia: Esses testes revelam informações sobre a toxicidade da molécula que está sendo estudada e se ela é capaz de penetrar a membrana celular e encontrar a proteína alvo sem causar problemas pra célula. Assim, quando chega nas fases mais adiantadas, a molécula já tem uma chance maior de passar nos testes clínicos em humanos. [música de transição] Lívia: Uma conexão importante entre essas áreas da química e da biologia com a ciência da computação pode acelerar essas primeiras etapas na descoberta de novos medicamentos e, consequentemente, tornar os custos menos elevados. Lidia: Inclusive, ano passado, em 2024, os ganhadores do Nobel de Química serviram como um bom exemplo de como a colaboração científica interdisciplinar pode render bons resultados. Lívia: Os ganhadores foram o pesquisador David Baker e a dupla de ingleses Demis Hassabis e John Jumper.  Lidia: O primeiro desenvolveu uma ferramenta computacional que permite desenhar proteínas completamente novas, já os últimos, ambos da empresa Google DeepMind, criaram um sistema de IA capaz de prever o formato tridimensional das estruturas de proteínas a partir de suas sequências de aminoácidos, a ferramenta AlphaFold. Lívia: O comitê do Nobel premiou o esforço conjunto de diferentes áreas, aquelas que a gente citou antes, a química, a biologia e a ciência da computação, como um incentivo a essas abordagens mais integradas de pesquisa científica. Karina Machado: Então, isso tem um grande impacto na descoberta de fármacos, porque quando eu quero fazer o planejamento de fármacos, se ele é baseado na estrutura do alvo, eu preciso da estrutura do alvo. Então, o AlphaFold, que foi o algoritmo, né, proposto por esse grupo do DeepMind, que ganhou o prêmio Nobel de 2024, ele tem  esse potencial enorme na descoberta de fármacos que é descobrir a estrutura do alvo que a gente vai então fazer o planejamento das moléculas. Lidia: Essa que você acabou de ouvir é a Karina Machado, ela é professora na Universidade Federal do Rio Grande, a FURG, e coordena o Laboratório de Biologia Computacional, o Combi-Lab, em parceria com o professor Adriano Werhli. Karina Machado: Então, eu sou formada em engenharia de computação, mestrado e doutorado em ciência da computação, pela PUC do Rio Grande do Sul. Mas, desde o mestrado eu comecei a trabalhar com a bioinformática. Então, essa área de pesquisa, assim, de busca de fármacos, né?  Lidia: Como a Karina falou ali na apresentação, ela também trabalha buscando novos fármacos, inclusive colaborando com os pesquisadores aqui do CQMED. Mas, a busca da Karina e da sua equipe é realizada de forma diferente, utilizando o aprendizado de máquina e, principalmente, o uso da Inteligência Artificial.  Lidia: A Karina listou pra gente alguns exemplos de como funciona a utilização da Inteligência Artificial, naquelas diversas etapas que a gente te contou, pra que um novo medicamento seja produzido e daí utilizado no tratamento de doenças. Lívia: Um desses exemplos é o rastreamento pra identificar moléculas capazes de se ligar na proteína-alvo. Karina Machado: Então a gente faz as simulações de docking molecular e outras simulações no computador, né? De moléculas candidatas à inibidora e essas essas simulações nos ajudam a selecionar moléculas mais promissoras pras etapas experimentais, que são geralmente muito mais caras e mais custosas em tempo também, né? Então, a IA, ela pode atuar em vários momentos nesse processo da seleção das moléculas promissoras. Lidia: Esse procedimento utilizando IA permite testar um número grande de moléculas por um custo reduzido quando comparado aos experimentos em laboratório. Karina Machado: A gente tem base de dados hoje, como o Enamine, que tem bilhões de moléculas, né? Então, não tem como testar isso em bancada, nem comprar essas moléculas,nem testar em bancada. Então, a gente pode usar IA para fazer filtros, de acordo com as características do alvo. Lívia: Outro exemplo do uso da IA seria pra treinar modelos que avaliam as propriedades das moléculas que os pesquisadores estão prevendo, pra serem utilizadas no futuro. Karina Machado: Então, esse algoritmo vai entender a linguagem das moléculas, ele vai ser capaz de gerar novas moléculas, assim como ele gera palavras para gente no nosso dia-a-dia que a gente usa esses algoritmos, né? Ele é capaz de gerar moléculas. E além de só gerar moléculas aleatório, com essa linguagem que ele foi treinado, ele já tem as regras de síntese dentro dele. Então ele gera moléculas que é possível de sintetizar em laboratório. Lívia: É como se o algoritmo conhecesse as regras químicas pra produzir uma molécula antes mesmo dela existir e já ter uma ideia de como ela irá se comportar em relação a proteína alvo que está sendo investigada. Karina Machado: Então, imagina que tu é um um farmacêutico, né, que que desenha moléculas novas no computador. Tu não tem ideia se essas moléculas têm propriedades que são características de um fármaco. Então, propriedades de absorção e as propriedades ADMET, que a gente chama, né? Então, existem vários algoritmos baseados em inteligência artificial que são capazes de fazer predições dessas propriedades de moléculas que ainda não foram sintetizadas e eles são treinados, né, a partir de características de moléculas já conhecidas. Então, tu tens um grande banco de dados de propriedades de moléculas conhecidas, tu treina um modelo de inteligência artificial e ele é capaz de fazer predições de moléculas novas, das propriedades de moléculas novas. Então, a gente também pode usar pra fazer esse filtro pós-seleção de promissoras, se eles atendem essas propriedades esperadas. Lidia: E é importante a gente destacar aqui, que o grupo de pesquisa da Karina ganhou um prêmio muito importante recentemente, que demonstrou a capacidade do sul global em desenvolver algoritmos pra buscar moléculas com potencial terapêutico. Lívia: O desafio basicamente é criar algoritmos pra simular e identificar moléculas capazes de se ligar a uma proteína, essa identificação é baseada nas estruturas e características químicas, tanto das pequenas moléculas quanto da proteína-alvo. Lidia: No caso dessa edição, que a equipe da Karina venceu, o alvo era uma proteína do vírus SArs-Cov2, lembra dele? A proteína do vírus causador da Covid-19. Por fim, os resultados apresentados pelos participantes são validados em laboratório, com moléculas e proteínas reais, pra avaliar quais equipes e algoritmos tiveram o melhor desempenho. Karina Machado: Então, acho que é importante a gente destacar, nós éramos um único grupo que participava do Sul Global. Então, todos os outros grupos, eles são ou da Europa ou dos Estados Unidos ou do Canadá. E o segundo lugar mesmo é um grupo que são um consórcio de sete universidades americanas, que participam num grande projeto de um jogo, né, que chama Drugit. E esse jogo que foi utilizado pelos pesquisadores, né, como estratégia pra busca. Esse grupo foi o segundo colocado, no desafio. Então, foi um resultado bem importante assim pra gente, do grupo. Eh, que a gente ficou bem contente, eles não esperavam que fosse um grupo do Brasil e nem nós. [vinheta oxigênio]  Lívia: É importante a gente lembrar aqui, que é muito difícil que os métodos computacionais substituam os testes experimentais. Os testes em laboratório e clínicos sempre serão necessários. Karina Machado: Eu acho que o que acontece os algoritmos ainda não são capazes de prever tudo o que acontece numa bancada e depois também, muito menos ainda, num organismo, assim, numa pessoa, né?  Lidia: É exatamente isso que a Karina falou, não é possível simular completamente, usando a IA, como o organismo humano vai reagir aos fármacos, mesmo que os estudos da ciência da computação estejam avançando tão rápido. Lívia: Outra preocupação que a gente deve ter no uso da IA, nesses casos, é a ética por trás dos dados.  Lidia: Os dados genômicos, por exemplo, que são utilizados em várias etapas do planejamento de fármacos, eles são gerados, na maioria das vezes, a partir de populações europeias ou estadunidenses, o que faz os dados ficarem enviesados ou distorcidos. Karina Machado: Então, não tem uma amostra de toda a população. A gente não tem amostra de brasileiro nessa população. Tem um número muito pequeno, né? A gente tem essa iniciativa grande, que é muito boa aqui no Brasil de fazer esse mapeamento genético, por exemplo, da população brasileira, né, de vários locais diferentes, de várias origens, enfim. E isso vai nos mostrar um panorama genômico, que é o princípio do início de qualquer pesquisa de medicamento humano, né?  Lívia: Essa é uma preocupação que não pode ficar de fora das pesquisas de desenvolvimento de fármacos. Se nós vamos substituir os testes em humanos para utilizar máquinas e dados, é preciso pensar quais populações esses dados estão representando. Porque, se esses dados não representam toda a população, eles também não serão capazes de prever reações adversas de um medicamento em todas elas. [música de transição] Lidia: Recuperando questões específicas do nosso país, a Katlin explicou pra gente como as pesquisas baseadas em alvo no desenvolvimento de novos medicamentos podem auxiliar no tratamento de doenças negligenciadas, que são aquelas doenças causadas por parasitas ou agentes infecciosos, que afetam principalmente as populações de baixa renda, em países em desenvolvimento. Lívia: Algumas doenças, como a doença de Chagas, a leishmaniose e a dengue, se manifestam especialmente em regiões com saneamento precário e alto índice de pobreza, como é o caso de algumas regiões do Brasil. Lidia: E a Katlin falou quais são os motivos em desenvolver pesquisas pra descobertas de novos fármacos pra leishmaniose. Katlin Massirer: Mas existe realmente um foco grande em doenças negligenciadas, por exemplo, a leishmaniose. Porque essas doenças causadas por parasitas, elas têm alguns medicamentos que ainda são muito tóxicos pros pacientes, dão efeito colateral e eles precisam ser tomados a longo prazo, então tem muita desistência de tratamento. Então, aqui nós procuramos desenvolver medicamentos que atinjam mais certeiramente o parasita e tenham menos impacto no corpo humano. Lívia: Além de medicamentos pro tratamento do câncer e das doenças negligenciadas, o CQMED também tem desenvolvido pesquisas no tratamento de doenças neurológicas. Lidia: Uma dessas buscas tem focado no tratamento do autismo, que é um transtorno do neurodesenvolvimento, caracterizado por alterações na comunicação social e no comportamento. Katlin Massirer: Então, uma outra demanda que tem vindo da sociedade pra nós é uma atuação maior em avançar novos medicamentos que possam auxiliar nos transtornos do espectro autista. Lívia: Eles têm entrado em contato com representantes do poder público, como vereadores e deputados, pra engajarem em uma maior assistência pros pacientes neurodivergentes. Katlin Massirer: Então, nesse aspecto, várias pessoas do nosso grupo têm preparado material, dado palestras e tentando capturar recursos, que possam acelerar essa pesquisa. Lidia: Além da importância na criação de fármacos que irão, futuramente, auxiliar no tratamento de doenças que afetam grande parte da população, as pesquisas desenvolvidas no CQMED também ajudam a entender o funcionamento dessas doenças. Lívia: Ou seja, as pesquisas ajudam na compreensão do mecanismo biológico da doença, e o que, exatamente, está acontecendo dentro de cada célula. E mesmo que as moléculas desenvolvidas durante a pesquisa não se tornem medicamentos, elas servem como sondas químicas, que são ferramentas pra investigar a biologia da doença. Lidia: Durante a pandemia da Covid-19, os pesquisadores também utilizaram os conhecimentos da equipe e a estrutura do laboratório pra atender uma outra demanda da sociedade. Katlin Massirer: Então, nós conseguimos, no período de três meses, contatar uma parceria com um laboratório de diagnóstico que estava montando um teste de covid em saliva e nós conseguimos produzir proteínas para esses testes. Lívia: Você deve se lembrar como foi importante a gente ter acesso aos testes de detecção do vírus da covid-19 na época da pandemia. O CQMED produziu reagentes pra um milhão de testes da covid-19, utilizando a estrutura de produção de proteínas do laboratório. [música de transição] Lidia: Bom, lembra da nossa pergunta lá no início? Será que você imaginava que pra descobrir um novo medicamento existia tantas etapas e tantas pessoas envolvidas? Lívia: Pode ser que você não soubesse disso lá no começo do episódio, mas até aqui a gente conseguiu ter um panorama, de como funcionam as pesquisas iniciais na descoberta de um novo medicamento, quais são os tipos de técnicas disponíveis pra que isso aconteça, quais os diferentes profissionais estão envolvidos nesses processos e como a ciência da computação pode ajudar nesse trabalho. Lidia: E é claro, sem esquecer de que essas pesquisas são desenvolvidas na universidade pública. Katlin Massirer: E assim, a sociedade vai entender o que é que nós estamos fazendo dentro da universidade. Esse é o nosso principal papel na universidade pública. Lívia: Isso quer dizer que a gente não pode esquecer que o financiamento dessas diversas etapas de pesquisa vem do poder público. Katlin Massirer: E aí, dentro desse contexto, existe um financiamento para complementar o recurso que uma empresa porte. É uma instituição denominada Embrapii, é uma Associação Brasileira de Inovação Industrial. Pra cada projeto que nós fazemos com empresa, essa associação adiciona uma contrapartida em dinheiro pra que esse projeto aconteça, seja acelerado dentro da universidade, juntamente com a empresa. Então, existem várias fontes de financiamento. Lidia: Então, o que a Katlin explicou, foi, que além do financiamento público, também existem parceiros como indústrias farmacêuticas e empresas startups que, em conjunto com a Embrapii, investem na relação entre pesquisa científica acadêmica e setor industrial, financiando a inovação e as descobertas de novas moléculas promissoras na criação de novos medicamentos. [música final] Lívia: Lembra lá do nosso exemplo do início, o capivasertibe, que é utilizado no tratamento do câncer de mama? O Inca, Instituto Nacional de Câncer, agora no mês do Outubro Rosa publicou um documento com alguns dados desse tipo de câncer no Brasil. Lidia: Segundo o Inca, o câncer de mama é o que mais mata mulheres no Brasil. Esse ano foram registrados 73.610 novos casos. Lívia: Daí a importância, seja com investimento público ou de iniciativas privadas, da pesquisa de cada um dos cientistas envolvidos nas diferentes etapas do desenvolvimento de um novo fármaco. [créditos] Lívia: O roteiro desse episódio foi escrito por mim e pelo Daniel Rangel, que também realizou as entrevistas e os trabalhos técnicos. Lidia: A revisão foi feita por mim. Lívia: Esse episódio faz parte do trabalho de divulgação científica que o Daniel Rangel desenvolve no CQMED da Unicamp financiado pelo projeto Mídia Ciência da FAPESP. Lidia: Agradecemos à FAPESP pelo financiamento e à supervisora do trabalho, que também nos concedeu as entrevistas, a Katlin Massirer. Lívia: A trilha sonora é da Biblioteca de Áudio do Youtube e a vinheta do Oxigênio foi produzida pelo Elias Mendez. Lidia: O Oxigênio conta com apoio da Secretaria Executiva de Comunicação da Unicamp. Você encontra a gente no site oxigenio.comciencia.br, no Instagram e no Facebook, basta procurar por Oxigênio Podcast. Lívia: Pra quem chegou até aqui, tomara que você tenha curtido passear pelos caminhos dos laboratórios, das moléculas e da criação de novos medicamentos! Você pode deixar um comentário, na sua plataforma de áudio favorita, contando o que achou. A gente vai adorar te ver por lá! Até mais e nos encontramos no próximo episódio. [vinheta final]
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    31:58
  • #203 – O que (não) é quântica?
    Não é de hoje que a quântica carrega um ar de misticismo e a reputação de ser a solução para os mais diversos tipos de problemas, sejam eles relacionados ao corpo ou à alma. Essa fama faz com que o termo seja usado de maneira irresponsável por charlatões que procuram lucrar com a venda de produtos e serviços pseudocientíficos, baseados em mentiras. Mas fato é que a quântica tem, sim, muitas aplicações reais e é uma área muito importante da ciência – não à toa, foi o tema central do Prêmio Nobel de Física em 2025. Por isso, no quarto episódio da série Parcerias, produzido por Eduarda Moreira e Mayra Trinca junto com o Fronteiras da Ciência, da UFRGS, e em comemoração ao centenário da Física Quântica, trazemos dicas e informações que ajudam a diferenciar o que é do que não é quântica. ___________________________________________________________________ ROTEIRO Eduarda: Imagina a seguinte cena: um professor entra na sala de aula no primeiro dia do curso e diz: Pedro: Hoje é um dia muito emocionante pra mim porque vamos começar a estudar Mecânica Quântica, e faremos isso até o fim do período. Agora, eu tenho más notícias e boas notícias: a má notícia é que é um assunto um pouco difícil de acompanhar intuitivamente, e a boa notícia é que ninguém consegue acompanhar intuitivamente. O Richard Feynman, uma das grandes figuras da física, costumava dizer que ninguém entende mecânica quântica. Então, de certa forma, a pressão foi tirada de vocês, porque eu não entendo, vocês não entendem e Feynman não entendia. O ponto é que…o meu objetivo é o seguinte: nesse momento eu sou o único que não entende mecânica quântica nessa sala, mas daqui uns sete dias, todos vocês serão incapazes de entender mecânica quântica também, e aí vão poder espalhar a ignorância de vocês por vários lugares. Esse é o único legado que um professor pode desejar! Guili: Isso realmente aconteceu! O físico indiano Ramamurti Shankar, professor da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, ficou famoso por esse discurso de boas-vindas – um tanto quanto sincero – aos seus alunos. Eduarda: Se a quântica é esse negócio tão complicado de entender até pra especialistas da área, imagina pra gente que nem lembra mais as equações que decorou pro vestibular. Não é à toa que muita gente usa o termo “quântico” pra dar um ar científico a produtos que não têm nada de científico, muito menos de quântico. Guili: A lista é bastante longa: tem “terapia quântica”, “coach quântico”, “sal quântico”, “emagrecimento quântico”… eu tenho certeza que você já se deparou com algum desses por aí. Mas, afinal, como saber o que não é, e, principalmente, o que realmente é a ciência quântica? Eduarda: É isso que eu, Eduarda Moreira, e o Guili Arenzon vamos te contar no episódio de hoje, que é uma parceria entre o Oxigênio e o Fronteiras da Ciência, podcast de divulgação científica do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Eduarda: Esse episódio é mais um da série comemorativa dos 10 anos do Oxigênio! Marcelo Knobel: Então, recentemente eu recebi um, inclusive de um aluno, que era uma mesa quântica estelar para resolver processos judiciais, para dar um exemplo extremo do que pode acontecer, mas tem aí cursos de pedagogia quântica, brincadeira quântica para criança, tem pulseiras quânticas e assim vai, é infinita a imaginação humana. Guili: Esse é o Professor Marcelo Knobel Marcelo Knobel: …eu sou professor de Física da Unicamp, sou professor há mais de 35 anos, fui reitor da Unicamp, atualmente estou em Trieste, na Itália, como diretor executivo da Academia Mundial de Ciências para Países em Desenvolvimento. E tenho trabalhado com divulgação científica, com gestão universitária, gestão da ciência, e é um prazer estar aqui com vocês. Guili: O Marcelo tem um gosto pessoal por investigar pseudociências, especialmente as quânticas, o que faz sentido, já que ele também é físico. Eduarda: Então, a gente conversou com ele justamente pra tentar entender porque as pessoas gostam tanto de usar o termo “quântico” nos mais diferentes contextos. Marcelo Knobel: Eu acho que a quântica ganhou um imaginário popular como algo complexo, algo realmente que está ali no mundo subatômico, que todos sabem que tem a ver com física, é uma física complexa, difícil de entender, não é trivial, nem para quem faz física, mestrado em física, doutorado, quem trabalha na área, é algo realmente muito, muito complexo de entender, porque tem fenômenos muito esquisitos que acabam acontecendo. Guili: A percepção de que a física quântica é uma área do conhecimento muito específica e difícil, e o fato de que nem os maiores estudiosos da área entendem completamente – como o professor Shankar falou pros alunos no primeiro dia de aula – acabaram tornando esse termo um prato cheio pros charlatões. Marcelo Knobel: …primeiro que ela exige e tem um formalismo matemático bastante avançado e complexo. Então, você precisa conhecer um pouco mais de matemática avançada para poder, digamos assim, realizar as fórmulas e tal. Eduarda: Se fosse só a matemática, a coisa ainda seria um pouco mais simples. Ok, eu não sei matemática avançada e talvez você também não saiba, mas eu consigo ver os efeitos de contas complexas que garantem que um prédio, por exemplo, vai se sustentar. Afinal, eu tô vendo o prédio ali, em pé. Guili: O problema com a quântica é um pouco mais complicado do que isso porque Marcelo Knobel: …de fato, tem umas coisas que são inacreditáveis do ponto de vista da nossa realidade e da nossa vida. Você tem aí uma miríade de fenômenos que são completamente estranhos à nossa realidade do dia a dia. Então, acabou tendo essa aura de algo misterioso. Guili: O que o Marcelo tá dizendo é que é muito mais difícil a gente conseguir observar os fenômenos quânticos no nosso dia a dia, por mais que eles estejam ali. Nara Rubiano: Física quântica é uma área da física em que a gente estuda fenômenos das coisas muito pequenas, das coisas do mundo microscópico…Então, as coisas do mundo macroscópico a gente não precisa de física quântica para entender, a gente precisa de física clássica e já tá bom. Eduarda: Essa que você ouviu agora, é a professora Nara. Nara Rubiano: Meu nome é Nara Rubiano da Silva, eu sou professora na UFSC de Florianópolis. Hoje em dia eu trabalho com óptica quântica, com óptica clássica e já trabalhei bastante também com microscopia eletrônica de transmissão. Eduarda: A Nara acabou migrando pra quântica depois que começou a se aprofundar mais nessa área, pra tentar entender melhor como funcionam os equipamentos com os quais ela trabalhava. Nara Rubiano: Para entender o microscópio eletrônico de transmissão, a gente parte muito do do entendimento quântico dos elétrons, né? Os elétrons, assim como outras partículas quânticas, outros objetos quânticos, ele tem algumas propriedades interessantes que a gente explora para fazer microscopia. Guili: Microscópios de transmissão são equipamentos super potentes, capazes até de gerar imagens de moléculas que estão dentro de uma célula. Essas estruturas são tão, mas tão pequenas que as lentes de aumento que usam luz dos microscópios tradicionais não dão conta de distinguir. Guili: Mas, calma, antes da gente entrar nesse novo mundo pra tentar entender o que é física quântica, de fato, uma etapa muito importante desse aprendizado é saber identificar o que não é. Eduarda: No meio de tanto charlatanismo, às vezes fica difícil diferenciar o que é informação confiável e o que é propaganda enganosa de produtos que se dizem científicos e eficazes, mas são pura mentira. O Professor Marcelo têm algumas dicas interessantes nesse sentido… Marcelo Knobel: Tem o que se chama kit de detecção de bobagens, que você sempre pode usar. Em primeiro lugar, é o que a gente chamaria em português, o simancol. Sempre colocar dúvida, pensar que nem sempre o que tem o palavreado muito complexo e científico é ciência. Tudo aquilo que alguém fala com muita convicção, muita certeza, já acende uma luz amarela que realmente pode não ser científico. Os cientistas, em geral, não têm tanta certeza assim das coisas. Eduarda: Hoje em dia, com a Inteligência Artificial criando vídeos e áudios falsos, fica cada vez mais difícil saber diferenciar esses conteúdos do que é informação real e de boa qualidade. Então quando você vir uma coisa muito incrível, o melhor a fazer é se esforçar um pouquinho e pesquisar. Marcelo Knobel: Em geral, você consegue, com um pouco de paciência, procurar alguma informação, ver se aquilo é, de fato, consenso ou não é, se existe trabalho científico sobre o assunto. Então, às vezes, exige um pouquinho mais de atenção e cuidado, mas, de uma maneira geral, hoje a gente tem a sorte de ter internet que permite um pouco esse cuidado. O importante é não repassar essas informações sem ter certezas Guili: A verdade é que essa associação entre a quântica e o universo místico existe há bastante tempo. Rafael Chaves: Então, para dizer que, na verdade, essa ideia meio alternativa, meio mística em torno da quântica já vem desde muito tempo. E o que aconteceu, talvez, ao longo das últimas duas décadas, é que isso se popularizou. Anteriormente, essas ideias estavam restritas a livros, talvez algum documentário. E hoje em dia, com as redes sociais, com uma forma muito mais eficiente de se transmitir informação, seja ela verdadeira ou falsa, fez com que a coisa tomasse uma proporção muito maior. Guili: Esse que você acabou de ouvir é o Rafael Chaves, ele é professor, pesquisador e divulgador científico na área de quântica, além de ser vice-diretor do Instituto Internacional de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em Natal. Rafael Chaves: A física quântica é meio contraintuitiva, meio esquisita. Aparentemente, ninguém entende muito bem. Então, tem essa outra coisa aqui, que também parece muito esquisita, que ninguém entende muito bem. Guili: Tipo telepatia, memória da água, astrologia… Rafael Chaves: Então, tem duas coisas que ninguém entende muito bem, então elas devem estar relacionadas. Eduarda: O que o Rafael tá dizendo é que a quântica aparece como uma forma de tentar explicar coisas que ninguém consegue explicar de outras maneiras. Muitas vezes porque essas coisas não são científicas mesmo, só que pra dar esse ar de comprovação e aumentar o hype, a galera finge que esse fenômeno é explicado pela ciência quântica. Guili: E isso meio que funciona na cabeça de muitas pessoas, porque como a gente não entende muito bem o que é quântica, fica fácil de acreditar que ela pode explicar coisas incompreensíveis, que na verdade ela não explica. Eduarda: Agora, tendo em mente que a quântica é realmente complexa, mas não tá associada a fenômenos mágicos ou alinhamentos energéticos, vamos tentar explicar o que ela realmente é e onde a gente tem contato com ela de verdade no nosso dia a dia. Rafael Chaves: Então, a gente usa a teoria quântica para explicar as propriedades das partículas elementares, as propriedades de materiais, semicondutores, isolantes, condutores, para explicar, por exemplo, a supercondutividade. Em astrofísica, a gente precisa de quântica para entender a evolução das estrelas. Em cosmologia, a gente precisa de quântica para entender a evolução do universo, inflação e assim vai. Então, quer dizer, é uma teoria que permeia todos os fenômenos físicos. Eduarda: Isso tudo pode parecer super tecnológico e recente, mas a história da quântica começou já tem bastante tempo. Esse foi, inclusive, um dos motivos que fez a gente querer falar sobre isso por aqui. Guili: O ano de 2025 foi declarado pela Unesco como o Ano Internacional da Ciência e Tecnologias Quânticas, celebrando os 100 anos do desenvolvimento das equações fundamentais que estruturaram, matematicamente, a Mecânica Quântica. Eduarda: Eu conversei com o Rafael e com a Nara em um evento de comemoração dos 100 anos da quântica que o Instituto de Física da UFRGS organizou lá em Porto Alegre. O pessoal do Fronteiras me convidou pra participar do evento e mediar uma mesa-redonda sobre divulgação científica. Foi incrível! Mas agora, voltamos com o Rafael. Rafael Chaves: Então, a física quântica surgiu ali na virada do século XIX para o século XX, quando cientistas começaram a explorar os recônditos mais microscópicos da matéria. Então, a gente está falando aí de interação entre luz e matéria, moléculas, átomos. Mas o que se percebeu é que, na verdade, essa teoria, esse conjunto de regras que nasceram para descrever esses fenômenos microscópicos, na verdade tem aplicação em uma gama muito maior de fenômenos. Eduarda: Os cientistas que propuseram essa teoria foram os físicos Werner Heisenberg, um alemão, e Erwin Schroedinger, um austríaco, que se basearam na tese de doutorado do francês Louis de Broglie, publicada em 1925, que apresentava a ideia revolucionária de que a matéria possui uma natureza ondulatória. Nara Rubiano: Na física clássica, que é a do nosso dia a dia, a gente tem dois tipos de objetos físicos muito distintos e que apresentam propriedades muito diferentes que são partículas, grandes classes, né? Partículas e ondas. Guili: Só que depois dessa primeira revolução quântica, a gente passou a entender que um mesmo objeto quântico pode se comportar tanto como onda, quanto como partícula, ou seja, que suas propriedades apresentam uma dualidade. Todos os fenômenos não intuitivos dos sistemas quânticos vêm justamente dessa propriedade. Eduarda: Aqui, a Nara Rubiano vai ajudar a gente a entender o que é essa dualidade onda-partícula. Nara Rubiano: As partículas são objetos localizados, centralizados em uma regiãozinha do espaço. Eduarda: Ou seja, são pontos que a gente consegue estabelecer onde estão num determinado momento. Nara Rubiano: Já os objetos físicos chamados ondas, eles não estão bem localizados, eles não são bolinhas, eles são como uma onda no mar. Ela está espalhada ao longo de uma de toda a crista da onda, por exemplo, e ela caminha, mas ela caminha como um todo, ela não caminha como um pequeno ponto que está se movendo. Eduarda: Pensa na diferença entre tentar acompanhar o movimento de uma onda e o movimento de um surfista em cima dessa onda, que aqui nesse exemplo representa o comportamento de uma partícula. Nara Rubiano: Então, essa diferença básica entre essas duas categorias leva a várias implicações. Se você deixar uma partícula interagir com alguma coisa, uma onda interagir com alguma coisa, a onda vai ter a propriedade, a capacidade de contornar a pedra, enquanto que uma pessoa ela não vai contornar, ela vai colidir. Guili: Tá. Até aqui deu pra entender, mais ou menos, o que diferencia uma onda de uma partícula na física clássica. Agora vamos entender como elas funcionam na física quântica … Nara Rubiano: Um objeto quântico, ele contém já essa dualidade de onda e partícula. Então ele é as duas coisas ao mesmo tempo. Mas, dependendo de como a gente observa esse objeto quântico, ele vai ter uma característica mais relevante do que a outra. Então, dependendo do tipo de observação que a gente faz ou do tipo de interação desse objeto quântico com alguma outra coisa do universo, ele vai reagir como uma onda, ou ele vai reagir como uma partícula. Guili: O que pode variar também, é o que o observador, ou seja, o cientista que está ali fazendo um experimento com objetos quânticos, quer avaliar. Se o objetivo é estudar as propriedades da partícula, o experimento é feito de uma forma, mas se o que o pesquisador quer, é entender as propriedades ondulatórias de determinada matéria, o experimento é desenhado de maneira diferente. Eduarda: Eu sei, pra mim isso tudo também parece ficção científica. Mas eu juro que a quântica já estáno nosso dia a dia há bastante tempo, e eu sou capaz de apostar que você usou alguma coisa que depende dela hoje mesmo. O Rafael tinha uma gama gigante de exemplos na manga: Rafael Chaves: Por exemplo, provavelmente o que eu estou falando aqui está chegando até vocês via fibras óticas. Nessas fibras óticas, a gente usa laser, luz laser. Luz laser para explicar as propriedades dela, para fazer engenharia de uma fibra ótica, entender as propriedades, como a gente usa ela para enviar informação, tem que ter física quântica. Eduarda: Isso também vale pra vários exames de imagem que, vez ou outra, a gente tem que fazer, tipo tomografias ou ressonâncias magnéticas. Guili: Mas esses exemplos foram só o começo, ainda tem muito mais quântica no nosso dia a dia. As placas solares também só puderam existir a partir da compreensão do funcionamento dos fótons, as partículas da luz. Rafael Chaves: Então, a luz bate, ela excita um elétron, gera um elétron com uma energia que, nas condições apropriadas, vai gerar uma corrente elétrica que a gente usa para gerar energia elétrica. Então, para entender esse fenômeno, a gente precisa, de novo, de física quântica. Eduarda: E não é de se surpreender que é na área de tecnologia que a quântica brilha mesmo. São tantas possibilidades, que normalmente suas aplicações são divididas em quatro categorias. Rafael Chaves: Uma é a computação quântica, que é a ideia de ter um computador que use esses novos ingredientes, esses novos recursos, para algoritmos mais eficientes, mais rápidos, mais acurados. Guili: A segunda é a comunicação e criptografia, que usa os efeitos quânticos pra tornar a troca de informações online mais segura. Você já deve ter visto o recado num aplicativo de mensagem verdinho dizendo que sua conversa está protegida por criptografia quântica, né? Eduarda: O Prêmio Nobel de Física de 2025, anunciado há pouquinho tempo, está diretamente relacionado com essas duas categorias. O britânico John Clarke, o francês Michel Devoret e o americano John Martinis dividiram o prêmio pela descoberta de que fenômenos quânticos podem acontecer mesmo em sistemas macroscópicos, como um circuito elétrico – e esse conceito, da transposição da física clássica para a física quântica é, justamente, a base para o desenvolvimento de tecnologias como a computação e a criptografia quânticas. Rafael Chaves: A terceira grande área, que é o sensoriamento quântico ou a metrologia quântica, que é a ideia de que sistemas quânticos são extremamente sensíveis, o que significa que a gente pode desenvolver sensores muito mais acurados. Então, por exemplo, para medir um campo magnético, para medir um campo gravitacional, enfim… Guili: E a quarta é a simulação quântica, que serve justamente pra ajudar a descrever, olha só, outros fenômenos quânticos. Isso porque, pra descrição de alguns cenários, é necessária uma quantidade absurda de combinações possíveis. Rafael Chaves: Então, assim, só para ter uma ideia, por exemplo, se eu quiser fazer quatro átomos de chumbo, eu precisaria, para fazer uma descrição fina de todos os graus de liberdade que eu tenho ali, de 2 elevado a 300 bits. 2 elevado a 300 bits é o número de átomos estimados em todo o universo. Então, o que eu estou dizendo é que para descrever um sistema de quatro átomos de chumbo, eu precisaria, para descrever as propriedades quânticas desse cara, eu precisaria de todo o universo só para guardar essa informação. Guili: Esses são cálculos impossíveis pra um computador padrão, desses que a gente tem em casa. Pra isso, são necessários os tais computadores quânticos. Mas segundo o Rafael, talvez, logo logo a gente tenha acesso a um pouquinho dessa tecnologia. Rafael Chaves: Pode ser que daqui a pouco tempo, a inteligência artificial que você usa aí no seu dispositivo acesse um computador quântico central para fazer parte dos cálculos, enfim. Eduarda: Essas aplicações da quântica em tecnologias do cotidiano, principalmente em princípios de comunicação, deram corpo pra segunda revolução quântica. A primeira foi a elaboração da teoria quântica em si, lá em 1925… Rafael Chaves: O que vai ser a terceira eu não faço ideia. Guili: O Rafael, a gente já te falou, também é divulgador científico. Ele escreveu até um livro sobre o tema, o “Incerteza quântica”, em que ele aborda os principais aspectos da segunda revolução quântica, em linguagem acessível para não especialistas. Eduarda: Como nossa ideia com esse episódio era tentar explicar – o melhor que a gente pudesse – como funciona a quântica, a gente pediu algumas dicas pro autor, e perguntou qual era a maior dificuldade pra falar sobre esse assunto pro público geral. Rafael Chaves: E a dificuldade, eu diria, é justamente encontrar quem tenha dez horas à disposição. Guili: É, acho que um podcast de 10 horas talvez não funcionasse muito bem. Mas eu entendo o ponto dele. É que falar de temas complexos e pouco presentes no dia a dia leva tempo, é preciso calma pra explicar as coisas do melhor jeito possível. Eduarda: E nesse mundo louco de redes sociais e pouca paciência pra ler ou estudar, tirar um tempão pra entender quântica pode não ser tão fácil mesmo. Guili: Nos resta acreditar que com o tempo, e com o acesso das pessoas a cada vez mais tecnologias, aos pouquinhos a ideia da quântica vai enraizando na gente. Nara Rubiano: A gente não tá acostumado a pensar dessa forma. É, e isso acontece naturalmente com várias teorias, é, científicas ao longo da história, né? Eduarda: Pelo menos com a Nara foi um pouco assim também. Nara Rubiano: É, acho que vai demorar muito para aprender bastante, mas eu vejo que aos poucos eu vou cada vez que eu revisito esses conceitos mais fundamentais, vou entendendo um pouquinho melhor e vou, né, aceitando também que algumas coisas a gente tem que aceitar. Porque funcionam. Que é o que a gente faz em ciência, né? A gente precisa achar teorias que funcionam. Nara Rubiano: Por mais que elas pareçam estranhas ou, né, contra intuitivas no começo, elas funcionam. Eduarda: E no fim, talvez isso seja o mais importante… Guili: Esse episódio foi uma produção do Oxigênio em parceria com o Fronteiras da Ciência. O roteiro foi escrito pela Eduarda Moreira e pela Mayra Trinca, com revisão da Lívia Mendes, da Carolina Brito e do Jeferson Arenzon. Eduarda: A locução que você ouviu no início do episódio, reproduzindo a fala do professor Shankar, foi feita pelo Pedro Belo. Os trabalhos técnicos são da Carolaine Cabral, a trilha sonora é do Blue Dot Sessions, e a vinheta do Oxigênio foi produzida pelo Elias Mendez. Guili: O Oxigênio conta com apoio da Secretaria Executiva de Comunicação da Unicamp. Eduarda: Esperamos que você tenha gostado e entendido, um pouco que seja, o que é a quântica! Você pode deixar um comentário, na sua plataforma favorita, contando o que achou, que nós vamos adorar saber. Nos encontramos no próximo episódio. Até lá!
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